Uma versão deliberadamente falsa, uma fake news, manipulando fatos graves e difundida massivamente pelas redes sociais, de forma proposital, por grupos políticos de extrema-direita, destinada a despertar sentimentos de ódio e de vingança, convulsiona o Reino Unido há mais de uma semana, com graves conflitos de rua, agressões físicas, danos ao patrimônio e, principalmente, o estilhaçamento de todos os padrões civilizatórios daquele país e de sua sociedade, expondo as entranhas de sua enfermidade.
Outrora o berço da primeira revolução industrial, na passagem dos séculos 18 para o 19, o Reino Unido, como o Brasil e outras nações do hemisfério ocidental, vem passando, há décadas, por um progressivo processo de desindustrialização, gerando uma massa de desempregados, subempregados, precarizados e desalentados, uma típica representação social criada pela “nova razão do mundo”, o neoliberalismo. Tal cenário de destruição, de falta de perspectivas para os indivíduos, é um terreno propício para que a irracionalidade, impulsionada pelo populismo, se imponha e reúna os sentimentos difusos no imaginário de seres em busca de retomar suas próprias vidas, uma projeção cada vez mais distante de se concretizar.
O neoliberalismo deve a pavimentação de sua reinserção, com vestes imperiais, no cenário global, em grande parte, às políticas dos governos da primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Tatcher (1979-1990), e do presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan (1981-1989). Eram tempos de Guerra Fria, em seus estertores – ela viria a fenecer junto com a União Soviética, em 1991, e essa aliança entre Tatcher e Reagan propiciou, com base nas formulações de seus conselheiros econômicos e políticos, uma alteração de toda a agenda global pelas décadas vindouras aos anos 1980.
Era o réquiem, hoje o sabemos, do breve período que o historiador Eric Hobsbawm chama de “Trinta Anos Gloriosos”, o ápice do estado de bem-estar social, erigido após a Segunda Guerra (1939-1945). O mundo não seria mais o mesmo a partir da abertura que Tatcher e Reagan deram ao adormecido neoliberalismo. O mundo começaria o seu processo de reencontro com toda a realidade de um Estado enfraquecido, de graves conflitos internos, típicos do período entre-guerras (1918-1939), no qual as distintas visões de sociedade e de organização do modo de produção travaram uma luta insana, no contexto de uma crise sistêmica de todo o capitalismo.
Essa junção perversa entre versões deliberadamente falsas acerca da realidade, redes sociais, desindustrialização e neoliberalismo forma um cenário de crise perfeito para que o radicalismo insano do imaginário das massas, impulsionado pelo populismo e sua pulsão de morte, gere situações como a que assistimos na região de Southport, norte do Reino Unido, e que se expandiu para outras áreas do país.
Derrotada nas urnas nas últimas eleições para o parlamento, quando o Partido Trabalhista, de centro-esquerda, elegeu a maioria absoluta dos representantes, a extrema-direita mostrou-se uma fiel seguidora das estratégias e táticas próprias desse campo político em todo o planeta na atualidade. Já há muito, sabemos da existência de uma forte organização de extrema-direita em nível mundial, comandada e financiada por setores transnacionais, e que tem por objetivo a desestabilização de governos democráticos, nos diversos países, para, então, pelo voto, assumir o controle do Estado e ir impondo suas formas autocráticas de estrutura de poder. Para tanto, o uso das redes sociais, na produção e difusão de narrativas que gerem pânico e acionem os sentimentos mais primitivos e desprovidos de controle, se mostra um elemento essencial.
Em Southport, o estopim para toda a convulsão foi o assassinato de três garotas e o ferimento, a faca, de outras dez pessoas. O autor foi um rapaz de 17 anos, nascido no Reino Unido. As causas, permanecem sob investigação. Mas nada disso impediu que, horas após o ataque, as redes sociais fossem inundadas com versões sobre um suspeito, apresentado como muçulmano e imigrante. A fantasia em torno da criação do culpado foi ainda mais refinada, classificando-o como alguém que havia entrado de barco ilegalmente no país, em 2023.
Nesse cenário, um conjunto de símbolos foi reunido para acionar a produção do caos social, e foi exatamente isso o que ocorreu. Romperam-se as amarras que prendiam a islamofobia, um dos muitos preconceitos incutidos no imaginário de parte da população do Reino Unido. A partir daí, começaram os ataques a muçulmanos, principalmente, a mesquitas e a centros de acolhimento de imigrantes por várias partes do país.
A Europa Ocidental, região que abriga países como o Reino Unido que, por séculos, praticaram o mais cruel colonialismo, em todas as suas versões, nos demais continentes, vem sendo alvo de imigrantes originários de suas antigas colônias e de outras regiões do planeta, que fogem dos conflitos internos, da miséria e da inexistência de condições de vida digna. Esses imigrantes formam uma parcela da população humana que vaga pelo planeta, apátrida, desterritorializada, desprovida de seus símbolos ancestrais – que renegaram ou abandonaram por diferentes motivos, colocando-se na grande arena mundial como seres desprotegidos e alvo da repulsa dos países que sonham habitar. Não possuem mais uma identidade, pois dela se afastaram fisicamente, e sequer conseguem uma nova, vivendo sob a condição de refugiados, ou, mesmo, vítimas de quadrilhas especializadas no manejo de toda a cadeia logística que os ilude como sendo capaz de alocá-los em um novo e sonhado território, cada vez mais imaginário.
A repulsa da Europa Ocidental ao imigrante é algo antigo, associado aos tempos das invasões germânicas dos primeiros séculos da era cristã e das inúmeras guerras que, durante séculos, os povos daquela parte do mundo travaram de forma sangrenta entre si, sempre submetendo os vencidos ao comando dos vencedores. A unidade nacional de inúmeras nações europeias, como a Espanha, por exemplo, e o próprio Reino Unido, só foi possível através de guerras, de submissão e de uma brutal estrutura de controle e dominação. Isso deixa marcas profundas no imaginário social, que são acionadas de forma competente e seletiva pelo populismo, como já o fez, no século passado, através do fascismo, nos anos 1920 e 1930, e recentemente, com a questão migratória elevada à condição de tema capaz de mobilizar as emoções e influir na política de inúmeros países, constituindo a repulsa aos imigrantes, ou o medo deles, um dos elementos propulsores de toda a engrenagem de pânico e ódio das massas que, de forma competente, opera a extrema-direita.
O caso de Southport reafirma todo esse cenário, atualizado na era da informação em rede, das plataformas digitais e da produção e difusão de conteúdos de forma irresponsável, sempre com objetivos políticos, mesmo que se sacrifiquem vidas e a estabilidade interna das nações. Mas isso pouco importa para quem se dispõe a travar uma guerra cultural e informacional, valendo-se das redes sociais e da produção de informações desprovidas de nexo com a realidade histórica. A história e a vida são sacrificadas em favor do alcance dos objetivos políticos mais abjetos, como vimos em Southport e em outras áreas do Reino Unido.
Nunca antes as emoções humanas foram tão facilmente tocadas, moldadas, manipuladas e direcionadas como nos tempos presentes. E o são não por criação externa ao ser, mas por que o externo, valendo-se das redes sociais e do discurso de ódio, aciona, no indivíduo ou na coletividade, toda uma carga de emoções a partir de informações, e um estímulo para que se destravem as amarras sociais que pactuam os princípios da civilidade e o respeito ao que, por delegação, há séculos, foi passado aos Estados Nacionais: a Constituição e as leis, bem como o monopólio estatal da força.
A estratégia política da extrema-direita deseja a anulação desse monopólio, com a sua consequente fragmentação entre os indivíduos, um estado pré-Hobbes. Nele, o indivíduo ou a coletividade, e não mais o Estado de forma autorizada, pode exercer, pela força, o sentido heteredoxo de justiça. São milícias, e não o Estado, que garantem a segurança do indivíduo e da coletividade. É a anomia, portanto, quando as regras que regem os indivíduos são rompidas, como definido pelo sociólogo Émile Durkheim. Isso, numa sociedade complexa como a contemporânea, traz consigo perigos enormes aos direitos e à própria vida das pessoas, uma vez que são seus pares, e não todo um sistema institucional, ainda que imperfeito, que decidem sobre eles, sua existência e sua propriedade.
Em Southport, como em outros locais mundo afora, vimos as pessoas sendo instadas a agirem elas próprias “fazendo justiça”, voltando sua ira e suas energias contra um inimigo por elas visto como real, projetado como tal – um arquétipo, o imigrante, mais especificamente, o imigrante islâmico originário das antigas colônias que o Reino Unido ocupou e explorou, por séculos, na Ásia e na África.
Na busca de realização desse conceito de “justiça”, uma cena assustadora ocorreu em um posto de gasolina, quando um homem correu atrás de um carro com uma família de muçulmanos, apontando uma motosserra em movimento. Sim, o mesmo equipamento que o atual presidente argentino, o neofascista Javier Milei, usou em suas manifestações de campanha, simbolizando com isso que pretendia cortar aquilo que, no seu campo de entendimento, não fosse útil ou se mostrasse um empecilho para seus projetos.
A motosserra, nesse sentido, tornou-se um fetiche dos neoliberais e dos neofascistas, pois não apenas secciona objetos e corpos, mas sonhos e realidades, como se transformada em um instrumento da ira desses seres que se julgam detentores do poder de vida e de morte. Secciona, também, a realidade histórica da distopia criada pela disfunção cognitiva, cuja expressão criminosa são as fake news.
A motosserra, numa leitura freudiana, seria um objeto fálico e cortante, representando toda a repressão contida nos corpos de quem a usa como instrumento de ataque e de morte. A motosserra é o falo cortante dos impotentes e perigosos seres que se julgam senhores, ameaçados em seus mundos antes projetados como inexpugnáveis. Ela é, por fim, a projeção de força de seres que se sabem dela desprovidos, daí sua agressividade desmedida e irracional, sua pulsão de morte.
Por detrás de todas as manifestações a partir dos crimes ocorridos em Southport, vimos a extrema-direita do Reino Unido levantar suas bandeiras xenófobas, expressas não apenas na agressão aos corpos , aos lares e aos abrigos dos imigrantes, mas em expressões como “nenhum barco a mais” e “queremos nosso país de volta”. Esse ultranacionalismo é um terreno fértil para o florescimento de uma cultura de intolerância e de ódio, de morte e de negação das diferenças, um terreno onde cresce o fascismo.
A democracia liberal do ocidente vem dando reiteradas provas de estar, ainda, bastante aquém de condições de enfrentar não o fascismo, mas os insumos que brotam do terreno onde ele floresce. Vivemos isso no Brasil, de forma direta, até dezembro de 2022, e como um espectro assustador, desde então.