É preciso que assumamos, de uma vez por todas, que vivemos tempos de guerras, psicológica e cultural, no ocidente, particularmente no Brasil. Contra uma sociedade democrática e plural, se movem forças poderosas, articuladas e financiadas interna e internacionalmente, cujos objetivos são: por um lado, desestabilizar as instituições; por outro, impor um modo de vida, um sistema de crenças, um imaginário e uma organização social baseados em padrões retrógrados, se comparados aos existentes, e ainda mais excludentes, que anulam todos os poucos, mas importantes avanços que a sociedade brasileira conquistou com muitas lutas ao longo da história.
Nesse contexto, o uso da violência física, a sua exaltação e espetacularização como elemento acionador de toda uma cadeia de emoções é um componente importante, haja vista que aciona, especialmente, os medos e rancores individuais e coletivos, bem como todo o conjunto de reações deles derivadas, sancionadoras de medidas de securitização que, no limite, anulam e cerceiam direitos e garantias individuais em nome de uma projeção de segurança imaterializável.
O século 21, e toda a maravilha da tecnologia da informação, trouxe consigo os meios adequados para que a sociedade e os indivíduos sejam tocados e tenham suas emoções acionadas por comandos distantes de si, mas que exercem uma influência capital sobre a conduta humana em tempo real. Para o bem e para o mal, vivemos uma quadra histórica em que as massas têm suas emoções formatadas, despertadas e direcionadas a partir de projetos políticos travestidos de múltiplas e farsescas vestes, o que confunde a percepção de sua real face e a interligação de seus interesses comuns na construção de um mesmo propósito.
O recurso sistemático aos mecanismos da gramática populista são um elemento comum em toda essa estratégia, haja vista a necessidade imperiosa de identificar e facilitar a decodificação da mensagem, da narrativa, junto ao público que se deseja influenciar diretamente. A extrema-direita neofascista soube, como nenhum outro campo político, valer-se do populismo para difundir sua mensagem e se impor como força, imantando apoios os mais variados, que a tornaram um player cada vez mais significativo em todo o cenário ocidental, no contexto da mais séria crise do capitalismo.
A ela se agregaram os fundamentalistas cristãos, católicos e protestantes, e os neoliberais, formando um sólido bloco político e ideológico, com um ideário capaz de corporificar uma nova forma de organização e de pensamento social, em tudo distinto daquele prismático que prevaleceu, em algumas áreas ocidentais, após o fim da II Guerra Mundial, em 1945. No Brasil, de modernidade sempre tardia, somente após a promulgação da Constituição Federal de 1988.
A tramitação do Projeto de Lei nº 1904/2024, o PL do estuprador, deve ser entendida como parte dessa estratégia de guerras, movidas pelos grupos cristãos fundamentalistas, sempre em aliança com seus parceiros no campo da extrema-direita neofascista. A percepção sobre a monstruosidade do conteúdo da norma legal proposta teve o condão de provocar, ao longo das últimas semanas, uma intensa mobilização social nas redes e nas ruas. Essa mobilização sustou a votação do projeto, cuja urgência já estava aprovada, por acordo de líderes, e levou a que o Presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP/AL), mantivesse a tramitação paralisada, ao menos até o segundo semestre, quando deve ir à votação em plenário.
Paralisada, mas não arquivada, o que já nos coloca em estado de alerta sobre o futuro da matéria.
Lira é um político de direita, conservador, líder do Centrão, mega pragmático e fisiológico. Preside a Câmara como se a Casa fosse uma extensão de suas propriedades particulares, numa clara demonstração do patrimonialismo, mas sempre tendo o cuidado de ouvir os seus pares, pois sabe que o isolamento de um líder político é a senha para o fim da sua carreira.
No contexto de uma sociedade cada vez mais tomada pelo imaginário e pelos valores neoliberais, Lira entende que as agendas econômicas, por mais desastrosas que sejam, são bem mais palatáveis ao público do que aquelas que dizem respeito à vida e ao corpo de cada indivíduo. Daí o seu recuo em relação à tramitação do PL do estuprador, temeroso da repercussão negativa da matéria junto ao conjunto da sociedade, mesmo tendo sido apresentada e defendida de forma radical pelos seus aliados da extrema-direita, em particular, pelos fundamentalistas cristãos.
O presidente da Câmara quis, com sua decisão, “esfriar o assunto”, jogando a deliberação para um momento no qual as emoções possam não estar tão exaltadas, diferentemente de hoje, quando, segundo pesquisa do Instituto Datafolha, 66 % da população rejeita o texto do PL do estuprador.
Mas esse projeto de lei é apenas mais um dos elementos de toda a estratégia das guerras psicológica e cultural travadas no Brasil. Tramita em paralelo, por exemplo, com a PEC da privatização das praias e com a PEC da liberação do trabalho infantil. Numa guerra, os ataques se dão sobre múltiplos alvos e ao mesmo tempo, de forma a confundir as defesas, levando-as ao quase colapso. Essa é a estratégia que a extrema-direita opera, com competência cada vez maior, desde o início deste século, sem que o campo político democrático consiga, até o momento, reagir de forma adequada a neutralizar não os efeitos, mas o lançamento dos ataques.
Coube ao professor João Cézar de Castro Rocha, da UERJ, decodificar todo esse processo de guerras psicológica e cultural em curso. Desde o comício/culto promovido por Silas Malafaia em louvor a Jair Bolsonaro, no mês de fevereiro, na Avenida Paulista, em São Paulo, Rocha vem alertando para algo até então desapercebido para a maioria da população brasileira, o avanço da Teologia do Domínio na gramática e nas práticas dos grupos fundamentalistas cristãos que integram o campo político da extrema-direita.
Isso se recobre de imensa gravidade na razão exata de que tais grupos, especialmente após o fracasso do golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, estão se transformando no núcleo mais orgânico da extrema-direita brasileira, naquele com maior capacidade de comunicação e de convencimento das massas, por meio do ecossistema de produção e difusão de informações criminosas, as chamadas fake news.
De fato, a capilaridade dos templos, o recurso ao populismo religioso, a manipulação das Sagradas Escrituras, a ênfase equivocada no Antigo Testamento, a louvação a um comportamento belicoso próprio da era pré-cristã, a imposição da vontade do líder, o acolhimento dos fiéis desalentados, em um mundo destroçado pelas brutais mudanças impostas pelo neoliberalismo, transformaram os fundamentalistas cristãos, suas lideranças, em referências mais políticas que religiosas, e disso elas se aproveitam para se imporem perante a sociedade.
Segundo Rocha, a Teologia do Domínio é uma doutrina de matriz estadunidense, aprimorada a partir da década de 1980, que teve no economista Gary North um dos seus principais formuladores. Essa Teologia consiste em um projeto político meticulosamente pensado, de dominação da esfera pública civil pelo pensamento e grupos religiosos, e pela imposição da doutrina cristã fundamentalista como base da vida social, em substituição ao conjunto de normas legais que marcam a construção do Estado Moderno e todo o processo de separação entre religião e Estado, iniciado no século 15. É o fim do Estado laico, tal como previsto na Constituição Federal de 1988.
Essa doutrina está em franco avanço no Brasil desde o início deste século, tendo recebido um substancial impulso durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), entre 2019 e 2022, que estabeleceu com o fundamentalismo cristão uma aliança das mais eficazes, incorporando em seu governo diversas de suas agendas e lideranças. O crescimento, a cada eleição, do número de representantes da chamada bancada da bíblia, bem como sua influência sobre a pauta do Congresso Nacional, é um fator que atesta essa ascensão.
O PL do estuprador, como outros similares, é apenas um elemento de toda a estratégia de dominação em curso, imposta através de uma guerra sem trégua, que passa pela ocupação dos espaços públicos, como os Conselhos Tutelares, pela ingerência nos currículos escolares, pela censura a comportamentos, por um conjunto diverso de proibições que buscam, no limite, impor a ordem de domínio que buscam erigir.
É algo que apavora, haja vista que nos remete a um período histórico sombrio, o das guerras religiosas da Europa Ocidental, cujas consequências se fazem sentir até o presente. Apavora, também, pela percepção de que a imposição de um domínio teocrático vai sendo construída de forma gradual, pela aceitação popular expressa no voto e consequente eleição de candidaturas alinhadas a essa estratégia. Apavora, por fim, quando percebemos que todo um conjunto de direitos e garantias fundamentais, duramente alcançado após séculos de lutas, pode ser anulado em um tempo de longa duração, no qual forças poderosas, e unificadas, estão agindo no sentido de impor uma transformação profunda do país, de suas instituições, de seu modo de vida, de suas estruturas, de seu pensamento.