Todos os anos uma tragédia anunciada se repete sempre de forma trágica. Fortes chuvas provocam inundações e desabamentos em inúmeras cidades brasileiras, no litoral e no interior. Além do desperdício de água, pois não há sistemas eficazes de armazenamento das mesmas, que se perdem levadas pelos córregos e rios em direção ao mar, vêm as perdas materiais e de vidas humanas, sempre em proporções cada vez maiores. Os governos agem prontamente, mas para mitigar os efeitos da devastação. Pouco é feito no sentido de resolver, de forma planejada, os perigos existentes nas chamadas zonas de risco ou, mesmo, de se operar uma reorientação da ocupação do solo urbano.
As cidades, em particular as brasileiras, com raras exceções, surgiram e cresceram de forma irregular, ocupando leitos de rios e córregos, aterrando o oceano, construindo em encostas dos morros. Isso é uma verdadeira soma de fatores perfeitos para que desastres naturais venham a ocorrer, cada vez mais com uma constância de tempo menor.
Nos grandes e médios centros urbanos, algumas medidas efetivas, mas ainda bem distantes de dar uma solução eficaz e segura ao caso, vêm sendo adotadas ao longo das últimas décadas. Investimentos públicos em obras de micro e macrodrenagem, reflorestamento e contenção de encostas, além da edificação de muros e obras diversas, drenagem de rios, córregos e canais, asseguram, ao menos, o escoamento mais rápido do excesso de água das chuvas e seguram, em algumas áreas, os pontos mais sensíveis a desabamentos. Entretanto, isso não pode ser generalizado por todo o Brasil pois, como é sabido, inúmeras cidades nem sequer apresentaram os estudos que viabilizem a captação de recursos para a execução dessas obras e serviços.
Mesmo onde são realizadas, tudo isso não tem a capacidade de conter a força reprimida de córregos e rios, comprimidos em seus leitos por construções irregulares, lixo e dejetos de esgotos, ou canalizados a céu aberto ou em galerias subterrâneas. Essa tentativa de domesticação dos cursos de água é fruto da urbanização desordenada, que se acentuou no Brasil de forma avassaladora a partir da década de 1950. Foi uma das taxas de crescimento urbano das mais expressivas de todo o mundo.
Não é fácil, barato e nem mesmo politicamente viável para qualquer administração alterar a ocupação do solo urbano, desde sempre pautada pela desorganização. Uma ocupação que atende a um imaginário assentado e conservador sobre o uso do solo, desprovido de qualquer racionalidade e que muito favorece aos especuladores imobiliários e, mais recentemente, ao crime organizado sob a forma de milícias, que estão se tornando verdadeiras potências incorporadoras em vastas áreas de cidades brasileiras. Todo esse cenário, desprovido da devida regulação e fiscalização, só favorece ao crescimento do caos.
Um acidente natural, provocado por fenômenos da natureza, de graves proporções não respeita nada e ninguém. A força da natureza é titânica e se faz materializada todas as vezes. As cidades, se não ficam destruídas, como, por exemplo, agora no caso de Mimoso do Sul, Bom Jesus do Norte e Apiacá, todas no Espírito Santo, além de Petrópolis (RJ), ficam totalmente alagadas por horas ou dias, criando transtornos insuportáveis para o conjunto da população.
A grande questão dos tempos atuais, nesse caso, reside em como o poder público e a sociedade como um todo irão, numa época de aquecimento global e desequilíbrio climático, conjugar os interesses originários das demandas da cidade, de sua população e as do capital especulativo. É imperioso, ao mesmo tempo, que investimentos públicos sejam destinados às obras que reduzam, progressivamente, a quantidade de áreas de riscos. Esse esforço vai para além do Estado, que precisa ter a sociedade, que vive e trabalha nessas áreas ao seu lado, como um agente ativo de transformação de toda uma realidade que, como visto, já nasceu errônea.
Indenizar as famílias vítimas de acidentes naturais deve ser visto como uma política pública – cara, mas necessária, pois o Estado precisa assistir à população em caso de perdas graves, como as ocorridas nas cidades do Sul do Espírito Santo no último fim de semana. Investir na qualificação e no equipamento adequado do Corpo de Bombeiros e das Defesas Civis constitui, também, algo de necessidade premente. Mas tudo isso tem o caráter de apenas mitigar efeitos danosos.
Não podemos continuar ignorando o passivo ambiental e climático criado pela humanidade ao longo dos séculos. Ele precisa ser resgatado e isso é um esforço coletivo, de escala global, começando com cada município e cada estado fazendo, em seu território, aquilo que lhe é de responsabilidade.
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