Às vésperas das tradicionais celebrações ufanistas que exaltam os acontecimentos de 7 de setembro de 1822 e suas perspectivas oníricas para a história do Brasil, esta coluna, fundamentada no pensamento de duas intelectuais brasileiras, Emília Viotti da Costa (1928-2017) e Lilia Moritz Schwarcz, propõe outras reflexões sobre os desdobramentos da Independência do Brasil para a vida dos brasileiros daquela época e suas possíveis repercussões na atualidade.
Emília Viotti da Costa, historiadora brasileira que lecionou em instituições prestigiadas como Yale, Stanford e Berkeley, é conhecida por suas análises críticas das estruturas sociais e econômicas do Brasil no século XIX. Em sua obra “Da Senzala à Colônia”, Viotti da Costa examina como a escravidão continuou a moldar profundamente a sociedade brasileira mesmo após a independência e como as promessas de liberdade e igualdade permaneceram inalcançáveis para a grande maioria da população.
De Lilia Moritz Schwarcz, historiadora e antropóloga brasileira, professora da Universidade de Princeton, buscou-se fundamentos na obra “As Barbas do Imperador: D. Pedro II, Um Monarca nos Trópicos”, livro no qual a autora constrói uma narrativa de que a figura de Dom Pedro II foi idealizada como um monarca benevolente e civilizador, embora essa imagem tenha sido utilizada, por vezes, para encobrir as tensões sociais e as resistências populares que marcaram o período imperial brasileiro.
A partir desses preciosos fundamentos, as análises e construções argumentativas entabuladas por este artigo não se restringem à visão heroica e simplificada do “Grito do Ipiranga”, mas procuram perscrutar camadas mais profundas da história nacional, revelando as contradições e complexidades do processo de independência do Brasil.
Nesse contexto, a questão central a ser investigada neste artigo pode ser delineada da seguinte forma: quais foram os reais desdobramentos da independência do Brasil na vida dos brasileiros à sua época e quais são suas repercussões na contemporaneidade?
O Brasil Imperial, com sua base econômica agrária, era dominado por grandes latifúndios, nos quais o trabalho escravo sustentava a produção de riqueza, concentrada nas mãos de uma pequena elite. Mesmo após a independência, os escravos continuaram a ser a força motriz das plantações, vivendo em condições desumanas e submetidos à violência cotidiana.
A abolição da escravatura em 1888, como aponta Emília Viotti da Costa, não trouxe alívio imediato para a população negra. Em vez disso, lançou milhões de libertos em uma sociedade profundamente desigual, sem acesso a terras, educação ou recursos básicos. A abolição perpetuou um ciclo de pobreza e marginalização que ainda marca a sociedade brasileira contemporânea.
Outro ponto de análise, proposto por este artigo, diz respeito ao crescimento das cidades brasileiras ao longo do século XIX, um processo marcado por um desenvolvimento profundamente desigual, que acentuou as disparidades sociais já existentes. Trabalhadores pobres, imigrantes e libertos eram relegados a cortiços insalubres, situados em regiões periféricas, com acesso limitado a serviços básicos.
Como observa Lilia Moritz Schwarcz, enquanto as elites urbanas se empenhavam em imitar os costumes e as modas europeias, buscando afirmar um estilo de vida sofisticado e cosmopolita, a maioria da população urbana vivia em condições extremamente precárias. Esse processo de urbanização excludente contribuiu para uma sociedade fragmentada, onde as desigualdades, herdadas do período colonial, se aprofundaram.
Em se tratando da educação no Brasil Imperial, esse bem emancipador era um privilégio reservado a poucos. Para Viotti da Costa, a história da educação no período imperial é uma história de exclusão, onde o acesso restrito ao conhecimento serviu como ferramenta para a manutenção das desigualdades sociais e a concentração de poder nas mãos de poucos. Essa exclusão perpetuou um ciclo vicioso de pobreza e ignorância que continuou a marcar o país muito tempo após o fim do período do Império.
A independência do Brasil, embora tenha sido um marco fundamental na busca de soberania para a construção do Estado brasileiro, não trouxe soluções para as injustiças sociais. Segundo Schwarcz, a continuidade dessas injustiças, manifestadas pela exclusão social da maioria da população, materializou-se em revoltas contra o governo do Brasil Império, como foram os casos da Cabanagem e da Balaiada.
Confirmando a atualidade do conteúdo crítico das obras clássicas de Emília Viotti da Costa e Lilia Moritz Schwarcz, pilar para este artigo, muitos problemas socioeconômicos típicos do Brasil Império ainda persistem no Brasil contemporâneo, como explorado a seguir.
Os dados do Censo Agropecuário do IBGE, mais recente (2017), revelam que a concentração fundiária no Brasil permanece alarmante. O estudo aponta que uma pequena parcela dos proprietários detém a maior parte das terras agrícolas, perpetuando as desigualdades históricas que marcam o país desde o período imperial. Essa concentração não apenas restringe o acesso à terra para a maioria da população, mas também reforça as desigualdades sociais e econômicas que impedem o desenvolvimento de uma sociedade mais justa.
Além disso, ao tratar da questão urbana atual, que persiste desde os tempos do Império, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da Fundação João Pinheiro (FJP) indicam que o crescimento populacional das grandes cidades tem levado ao aumento significativo do déficit habitacional.
Em 2020, o déficit habitacional no país foi estimado em cerca de 5,9 milhões de domicílios, com as maiores concentrações em grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Esse déficit inclui tanto a necessidade de novas moradias quanto a inadequação das habitações existentes, que muitas vezes carecem de condições básicas de infraestrutura.
Paralelamente ao déficit habitacional, o fenômeno da gentrificação, especialmente em áreas centrais metropolitanas, intensifica as desigualdades sociais. A modernização desses bairros, embora melhore a infraestrutura urbana, provoca o deslocamento de cidadãos de baixa renda para regiões periféricas com menor acesso a serviços, exacerbando a exclusão social.
Adicionalmente, estudos recentes, como o relatório “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil” do IBGE em 2019, evidenciam que a desigualdade econômica racial no Brasil continua sendo uma questão profundamente enraizada e persistente desde o Brasil Império. O relatório destaca que negros e pardos enfrentam maiores desafios no mercado de trabalho, sendo subutilizados e menos representados em cargos de gerência, além de receberem salários inferiores aos dos brancos, mesmo com níveis de educação semelhantes.
Complementando os dados do “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, resultados de pesquisas do Oxfam (Comitê de Oxford para Alívio da Fome), em 2020, indicam que, mantidas as taxas de progresso atuais, levará décadas para que negros e pardos alcancem a igualdade salarial com os brancos, sublinhando a necessidade urgente de políticas públicas mais eficazes para combater essas disparidades estruturais brasileiras.
Portanto, a leitura atenta das obras de Emília Viotti da Costa e Lilia Moritz Schwarcz, juntamente com o exame da evolução socioeconômica até a atualidade brasileira, revela que a independência política não foi acompanhada por uma transformação social e econômica que beneficiasse todas as camadas da população. As estruturas de poder e as desigualdades herdadas do período imperial continuam a influenciar a dinâmica social e econômica do país.
Ao revisitar criticamente esses momentos históricos, com um pensamento prospectivo, é possível identificar, após 202 anos de independência, as raízes dos problemas socioeconômicos que persistem no Brasil e buscar formas de finalmente concretizar os ideais de liberdade e igualdade que continuam a ser um sonho distante para a maioria dos brasileiros. A independência de Portugal marcou o início da jornada do Brasil como nação soberana, mas as promessas de um país justo parecem, ainda, pertencer a um futuro longínquo, quase impossíveis de serem concretizadas.
Assim, cabe aos brasileiros da atualidade, à luz dessas reflexões históricas, encontrar caminhos que levem, verdadeiramente, à construção de uma pátria acolhedora para todos os cidadãos. Isso envolve a implementação de políticas públicas inclusivas, a promoção da justiça social e o compromisso contínuo com a educação e a igualdade de oportunidades. Somente por meio de uma abordagem integrada, sustentável e pautada pelos princípios democráticos será possível superar as barreiras históricas e construir uma sociedade mais justa para todos os brasileiros.