Em tempos de um ferrenho debate sobre a inteligência artificial, o termo cidade inteligente (smart city) soa como o futuro logo ali na nossa esquina. Não é a primeira vez que recebemos a informação de que a tecnologia irá salvar a humanidade. Já caímos neste conto, lá no início do século XX, quando acreditamos na figura do homem-máquina e que todos teriam automóveis particulares para seu deslocamento. Não é difícil observarmos o resultado deste ideário nas cidades contemporâneas. Portanto, sugiro ao leitor alguma cautela sobre o tema.
Via de regra, a incorporação da tecnologia na gestão urbana nos vende um futuro melhor e radiante, que promete uma série de soluções relacionadas à mobilidade urbana, eficiência energética e segurança pública, dentre outras benesses, que irão melhorar a vida do cidadão comum. O contraponto é que está sendo criado um mercado através da venda de uma necessidade permanente de equipamentos e sistemas de alta tecnologia, como se dependêssemos apenas destes para promovermos a melhoria de nossas cidades.
A força do marketing das Smart Cities possui base em diversas corporações internacionais que enxergam o ambiente urbano como um mercado quase infinito. A cada ano surgirão novos sistemas e tecnologias, tornando obsoleto o equipamento do ano passado. O que nos coloca novamente no ciclo da obsolescência, onde se gera a necessidade da constante troca de equipamentos. Esta estratégia mercadológica se aplica aos celulares, impressoras, laptops etc. Os quais possuem uma vida útil que mal ultrapassa um par de anos antes de serem descartados.
Diversos equipamentos “Inteligentes” já estão entre nós há algum tempo. Basta lembrar que se, por descuido ou segurança, ultrapassarmos um sinal fechado em um cruzamento equipado com uma fotocélula, por sua vez conectada a um sistema de reconhecimento de caracteres, automaticamente nossa placa será reconhecida e uma bela multa chegará em nossa residência.
Este evento ocorre sem que ninguém tenha tomado uma decisão a não ser o próprio sistema. Este “semáforo inteligente” é um exemplo clássico do que chamamos de internet das coisas (IOT – intenet of things) que já está presente no cotidiano de nossas vidas. Portanto, verificamos que, quando interessa à gestão pública, a tecnologia é incorporada com eficiência. Mas fica a pergunta: de que forma o cidadão já está sendo beneficiado? Em tese o Rio de Janeiro é uma das cidades mais inteligentes do Brasil. Mas será que é um fato?
Em seu conceito original, as cidades inteligentes tornam o ambiente urbano similar a um organismo vivo, sendo capaz de reagir em tempo real a questões relacionadas à mobilidade urbana, segurança pública, climáticos etc. Sempre através de sensores e uma enorme quantidade de dados, usualmente conectados a centros de operações que, por sua vez, informam os possíveis tomadores de decisão. Em tese, o desenho da operação é encorajador, porém, este esbarra em uma miríade de obstáculos imediatos: a compreensão política da necessidade do investimento em equipamentos e sistemas, a capacitação técnica e operacional de pessoal e a descentralização das operações propriamente ditas através de múltiplos centros de controle espalhados estrategicamente pelo território.
Aqui assistimos ao surgimento de um novo profissional: o gestor de cidade inteligentes – o qual, deve ser preparado para a compreensão do espaço urbano e capacitado para manobrar e interpretar a grande massa de dados – um híbrido entre o analista de sistemas e o arquiteto-urbanista.
Aceitamos o fato de vivenciarmos uma era digital. Nos tornamos completamente dependentes da tecnologia e de nossos aparelhos celulares. Como um personagem do filme MATRIX, nossa individualidade se revela para os algoritmos como uma imensa massa de dados em um monitor de fósforo verde.
Estes são capazes de reconhecer nossas preferências, inclinações políticas, gostos e georreferenciar nossa posição geográfica 24/7. Ao aceitarmos os “termos de uso” (que nunca lemos), abrimos as portas do nosso íntimo para nos tornarmos uma célula na big data. Isto parece ameaçador… e é! Por outro lado, este fato já está entronizado em nossas vidas e, aparentemente, estamos sobrevivendo. Se é inevitável, por que não utilizarmos essa “inteligência” para de fato promover a vida das pessoas?
Prefiro pensar em uma tríade formada pelos sensores (smart city), pelo georreferenciamento e o uso positivo da inteligência artificial. Exemplificando. A aplicação imediata destes dados deve se manifestar na mobilidade urbana através de um mapeamento inteligente de origem-destino dos cidadãos, deste modo, regulando os sistemas viários e ferroviários de acordo com as expectativas de demanda – evitando a tradicional superposição de linhas tão comum nas cidades brasileiras.
Analogamente, podemos incrementar a participação social na solução de problemas usuais como vias mal asfaltadas, bueiros abertos, iluminação deficiente etc. Imaginemos que através um aplicativo de celular, o cidadão possa registrar fotograficamente o problema a ser relatado. Por sua vez, a imagem sobe georreferenciada para uma nuvem virtual, sendo revelada como um ponto temático no mapa da sala de operações. Caso, a comunidade faça o mesmo, o ponto que registra o problema se transforma em uma mancha, possibilitando ao operador decidir quando e como solucionar a questão. Esta metodologia cria e consolida um senso de comunidade em que todos participam para a solução de um problema comum.
Da mesma forma, aplicativos relacionados à economia circular devem ser desenvolvidos. O descarte de muitos, se transforma em matéria prima de outros. A capacidade de criarmos redes de trabalho nas comunidades é uma real possibilidade. As redes sociais e a IA podem ser trabalhadas para o bem. Através da análise dos dados, podemos conectar prestadores de serviço como, por exemplo, costureiras, induzindo uma cooperativa “virtual” capaz de fornecer uniformes para escolas municipais. As possibilidades são imensas, desde que o objetivo seja diferente de apenas vigiar e punir (como no caso das multas).
As cidades são a maior realização coletiva humana. Manifestam em sua estrutura os valores de uma civilização através de cicatrizes temporais em seu traçado. Portanto, sob certo aspecto, podem ser considerados organismos vivos em permanente evolução. Sob uma ótica biológica/urbana, estes organismos (cidades) buscam cicatrizar suas feridas abertas – em sua maior parte provocados por decisões equivocadas de planejamento urbano. O maior exemplo é o surgimento das favelas em locais próximos aos empregos e fontes de renda. Como um organismo, a cidade se reestrutura buscando um ponto de equilíbrio. Desta forma, podemos considerar que as cidades já são naturalmente inteligentes. A tecnologia pode contribuir para uma cidade mais justa, segura e próspera, mas apenas se soubermos direcioná-la para este fim. O cidadão inteligente, emponderado pela tecnologia e seu uso racional é uma real oportunidade que se apresenta para o futuro. No final, a decisão é absolutamente humana e de nossa responsabilidade.