O movimento segue operando sua estratégia, que coloca em cheque, no Brasil, as frágeis e contraditórias estruturas da democracia liberal e de suas instituições. Esse é um processo reiterado diuturnamente, desde 2013, quando se abriu um perigoso flanco na força política hegemônica, que governava o país desde 2003, o PT e seus aliados. Tal flanco permitiu, no limite, o progressivo desgaste do partido e correligionários, até a sua derrota, viabilizada através de uma bem arquitetada e articulada movimentação de peças na esfera do Congresso Nacional, do Poder Judiciário e do Ministério Público Federal, tendo como ápice o golpe que derrubou a Presidenta Dilma Roussef, em 2016, e a eleição de Jair Bolsonaro, em 2018.
O movimento é a denominação dada pelo estadunidense Steve Bannon, um dos seus mentores, à grande internacional neofascista, uma articulação transnacional de partidos e grupos de extrema-direita, neonazistas, fundamentalistas religiosos, supremacistas e ultranacionalistas, que se aglutinam em torno de uma agenda política e social conservadora, reacionária e autocrática, voltada para a conquista, o exercício e a manutenção do poder nos diversos países ocidentais. Exatamente por isso, os interesses geopolíticos do movimento são amplos. Seus jogos de poder obedecem a uma estratégia de “ataque de enxame”, de desestibilização institucional permanente.
Hoje, no Brasil, ao mesmo tempo em que se desenrola a pantomima Marçal e Bolsonaro, o empresário Elon Musk novamente entra em atrito com o STF e a legislação brasileira, reafirmando o seu desejo de agir à revelia da autonomia deste Estado-Nação. Agindo assim, Musk, expoente do movimento, abastece o extremismo de direita brasileiro, juntamente com a mídia corporativa, de insumos para os ataques ao Tribunal e a um de seus Ministros, Alexandre de Moraes, aquele que, junto com o Presidente Lula (PT), são os homens mais odiados e combatidos por esse campo político, com ameaças à própria vida, inclusive.
A estratégia, como sempre, é a de radicalizar as crises, de politizar ao máximo o cotidiano, de forma a esvaziar o verdadeiro debate político, criando um ambiente de tensões insuportáveis para, no limite, permitir algum tipo de medida exacerbada por parte das multidões, cada vez mais descrentes em relação as instituições e encantadas com a projeção da anomia como algo a ser perseguido e instaurado. O movimento consegue iludir as massas, subverter os discursos e a própria história para, capturando as emoções, colocá-las e à sua potência sob controle, como um elemento vital de pressão.
A candidatura de Pablo Marçal (PRTB) à Prefeitura de São Paulo representa, nesse contexto, uma das peças movimentadas, juntamente com o caso envolvendo Elon Musk, pelo movimento, no sentido de retomar o protagonismo político das massas sob a liderança da extrema-direita neofascita, algo meio adormecido, há alguns meses, em razão da inflexão pragmática da grande liderança desse campo político, o ex-Presidente Jair Bolsonaro (PL).
Bolsonaro vem adotando uma postura mais moderada, seja em razão das decisões judiciais desfavoráveis já proferidas em relação a ele, seja em razão da iminência das inúmeras e graves denúncias que podem ser protocoladas no Supremo Tribunal Federal pela Procuradoria Geral da República, todas centralizadas na sua importância para a realização do conjunto de atos criminosos praticados ou planejados contra a Democracia, as instituições republicanas, a vida humana e a fazenda pública ao longo de seus quatro anos de governo (2019-2022).
Em momento algum dessa fase pragmática, Bolsonaro abdicou de sua crença nos cânones extremistas de direita, com forte influência do ultraneoliberalismo, que tem no movimento o grande polo articulador em nível internacional. Mas, desde a segunda metade de seu governo, vem se aproximando das forças políticas conservadoras, reunidas no Centrão, adequando-se, em parte, ao modus operandi delas. Passou a agir, aos olhos de sua massa de seguidores, sobre a qual exerce indiscutível liderança e fascínio, com um perfil próximo de políticos que, em 2018, foram objeto de satanização cruel em sua campanha vitoriosa para a presidência.
Foi uma campanha cujo discurso, devidamente trabalhado nas ruas e, principalmente, no ecossistema das redes sociais, liberou as energias retidas de um reacionarismo brutal, há muito reprimido no imaginário social brasileiro, e que tem por base toda a estrutura autoritária e desigual de organização social e política sobre a qual se fundou e estruturou o Brasil. Um discurso que cancela os frágeis marcos civilizatórios de uma sociedade em processo de construção da democracia.
No entanto, a despeito desse discurso e práticas, o pragmatismo alcançou o líder. Nada mais perigoso para a perenidade de uma força política que a perda de sua identidade, e é exatamente essa a preocupação que povoa boa parte da extrema-direita brasileira, que se sente tolhida em seu radicalismo, acossada pelo pragmatismo e pelo governo democrático liderado pelo Presidente Lula (PT), desejosa de reativar toda a agitação que a elevou à condição de protagonista da vida nacional ao longo da última década.
O interregno entre janeiro de 2023, quando um golpe de Estado foi tentado e derrotado, e os dias atuais, carrega em si os sombrios e dolorosos sentidos do purgatório, moldado na obra de Dante Alighieri, para a extrema-direita brasileira. Ela manteve sua organização e mobilização, se consolidou entre os grupos cristãos fundamentalistas, católicos e protestantes, mas foi sendo drenada na energia vital que a tornou protagonista em 2018, a ocupação das ruas.
Esse esgotamento se deve aos recuos constantes de sua principal liderança, acossada pelas investigações e seduzida pelo grande capital, que a preza, mas que deseja que, de suas fileiras de aliados, emerja alguém como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), para ser seu sucessor, um pós-bolsonaro, pouco mais palatável no discurso e muito mais pragmático na execução de uma agenda de desmonte do Estado brasileiro. Pelo menos, era esse o cenário até a aparição de Pablo Marçal há algumas semanas.
Para o grande capital, Bolsonaro cumpriu com maestria o papel de líder, movimentando as massas em estado permanente e dando combate sem trégua ao “inimigo”, como rezam os manuais do fascismo histórico, mas deixou um legado pífio na entrega dos produtos relacionados à abertura de negócios sob as ruínas do Estado de que desejam se apossar. Querem alguém que materialize, rápido, esse segundo objetivo.
O pleito municipal de São Paulo estava todo organizado pelas forças políticas, até a emergência de Pablo Marçal. Notório personagem da extrema-direita radicalizada, influenciador digital com milhões de seguidores, Marçal provocou um abrupto movimento das placas tectônicas da política paulistana, com abalos por todo o Brasil.
Se a candidatura de Bolsonaro, em 2018, foi planejada e executada, ao menos a princípio, como um projeto de retorno dos militares ao controle do aparato do Estado brasileiro, a de Marçal, este ano, tem no ecossistema das redes sociais seu habitat e seu ponto de impulso. Valendo-se de sua competência no manuseio das redes e na captação de seguidores, bem como na geração de lucros em razão desse movimento, Marçal se coloca na disputa pela Prefeitura, desafiando, aparentemente, o grande líder, Bolsonaro, atraindo para si aquelas energias e emoções extremistas de direita em estado bruto.
Isso porque, para além de seus projetos pessoais, enquadra-se entre os que não desejam submeter a extrema-direita a um acordo pragmático com as forças políticas do Centrão, todas aglutinadas na reeleição do atual Prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB). Ao contrário, deplora essa submissão, que se operou através de uma aliança entre elas e Bolsonaro, com o ex-Presidente indicando um Coronel da PM de São Paulo – oriundo da ROTA, uma tropa de elite de alta letalidade e que presidiu a CEAGESP (a CEASA de São Paulo) durante o seu governo – como vice de Nunes.
Para Marçal, expressando o pensamento puro da extrema-direita, essa submissão representa a perda de identidade e de protagonismo de seu campo político, algo inadmissível para pessoas que têm na mobilização permanente, no discurso de ódio, na negação das instituições, no desprezo pela democracia liberal, nos preconceitos de toda a ordem, na afirmação de sua superioridade, na rejeição às diferenças, no combate ao “inimigo”, alguns de seus princípios de vida. Acordos políticos, para a extrema-direita, são aceitáveis apenas quando ela mantém a liderança e o protagonismo, nunca o contrário. Os aliados precisam subsumir em seu campo de liderança, essa é a regra, parte de uma estratégia do movimento, sempre em busca de impor sua hegemonia.
Conhecedor de toda a gramática extremista de direita, bem como a das redes sociais, Marçal se apresentou ao público de forma impactante, desde o início, abusando da agressividade, de toda a sorte de calúnias e mentiras, do desprezo pelos integrantes dos campos políticos opostos. Sabia que precisava de toda a atenção concentrada sobre si – conhece e opera como poucos a Economia da Atenção, e conseguiu tal feito, mesmo que seu desempenho nas pesquisas de intenção de votos seja ainda bem aquém daquilo tido como ideal para assegurar uma vitória nas eleições.
Aliás, isso pouco importa neste momento, quando o foco, algumas semanas após a pantomima trágica de Marçal haver começado a ser encenada, é o reagrupamento da extrema-direita em um grande e monolítico bloco, com retorno de Jair Bolsonaro ao papel que o projetou como liderança. Um retorno que, pelas informações que transitam nas redes sociais e na mídia corporativa, está cada vez mais próximo de se materializar, até com a possível formação de um partido genuíno de extrema-direita.
Bolsonaro temeu a perda da liderança de seu campo político para alguém mais identificado com o sentimento raiz que o caracteriza, Pablo Marçal. Passadas as estranhezas e escaramuças iniciais, a família Bolsonaro e Marçal caminham em direção a um ponto comum, o da unificação de forças, o que representará não a ruptura formal do acordo em torno da candidatura de Nunes em São Paulo, mas a encenação grotesca de uma peça farsesca por parte de um personagem tão canastrão como o ex-Presidente, coadjuvado por alguns personagens secundários, mas não menos importantes.
Bolsonaro sabe que parte de seus aliados, como o governador Tarcísio, sempre foi pragmática. Tarcísio sonha, em razão do impedimento do líder de disputar eleições, por força de condenações judiciais, liderar ele a extrema-direita, aliada ao Centrão, nas próximas disputas eleitorais, consubstanciando um projeto conservador, com um reacionarismo aparentemente controlado.
Por outro viés, não pode o ex-Presidente abrir guerra contra personagens como o também ex-Presidente Michel Temer (MDB), padrinho político de Nunes, e um dos principais defensores de Bolsonaro junto ao Poder Judiciário e ao Congresso Nacional. Nunca é demais lembrar a condição jurídica de Bolsonaro, impedido de disputar cargos eletivos por um longo período, e com evidências que podem, a qualquer momento, dependendo da conveniência política, levar a que o Procurador Geral da República, Paulo Gonet, peça ao STF sua prisão em caráter preventivo ou provisório. Por isso, Bolsonaro não deseja atiçar a ira de Temer, um homem vingativo e poderoso junto aos tribunais, que pode se voltar contra ele e deixar que o devido processo legal tenha seu curso desobstruído com o fim das tratativas feitas diretamente com altas autoridades do Judiciário. Mas a política é sempre um grande palco para encenações de produções tão grotescas quanto trágicas, com enredos de traições e simulações.
Cabe aqui im pequeno aparte: Bolsonaro é uma pessoa notadamente medrosa, que busca um acordo de salvação na primeira manifestação séria de ameaça à sua liberdade. Isso o levou, inclusive, em 2023, após a operação Tempus Veritatis, a uma mal explicada estadia de quase dois dias na embaixada da Hungria em Brasília, levantando suspeitas de que ensaiava um pedido de asilo político àquele país, governado por um dos líderes do movimento, o Primeiro-Ministro Viktor Órban.
Pablo Marçal soube se colocar no momento e no lugar certo para pressionar Bolsonaro a empreender sua mítica Odisseia rumo às raízes extremistas da direita neofascista brasileira. Aproveitou-se do desconforto do ex-Presidente em manifestar apoio a um candidato que notoriamente não desejava apoiar, Nunes, para confrontá-lo no sentido de lhe retirar das garras do Centrão, nas quais encontrou uma zona de conforto em meio a todo o emaranhado de irregularidades e crimes que assombram suas ações pretéritas e atuais. Marçal lhe oferece o idílico paraíso que a radicalização das massas proporciona. Um Bolsonaro acuado tem a oportunidade, novamente, de ser o incendiário das massas, secundado por uma legião de aliados mais jovens, mais competentes no manuseio do ecossistema das redes sociais e mais radicais no discurso demolidor das instituições e dos padrões civilizatórios.
Esses jovens aliados são algo mais próximo do atual Presidente da Argentina, o neofascista Javier Milei, uma das grandes apostas do movimento, que já trabalha com as consequências do possível fracasso eleitoral, em novembro, de seu grande líder, Donal Trump. Milei, como o salvadorenho Bukele, apesar dos problemas conjunturais, são apostas do movimento para uma transição geracional de suas lideranças, e que parecem estar sendo testadas com razoável competência, ao menos até o momento.
Marçal, da mesma forma que Bolsonaro em 2018, tem a favor de si um processo seletivo de normalização de seu histórico, uma verdadeira “capivara”. Suas relações com práticas de crimes recorrentes, e mesmo com o Primeiro Comando da Capital (PCC) – a principal organização criminosa em operação no país, com ramificações internacionais –, sua agressividade, seu discurso raso que remete a uma realidade paralela, totalmente desconectado dos fatos, vão sendo absorvidos e relativizados pela mídia corporativa e propagados como ladainha pelas redes sociais, que conhece e articula de forma bastante competente.
E chegamos ao paradoxo de ver Marçal ser elogiado pelos predicados de comunicador e conhecedor da gramática das redes, algo surreal, haja vista que o discurso não pode ser analisado fora do contexto e do personagem que o produz, bem como dos interesses que o movem. Um paradoxo que louva a desinteligência e a subserviência, emulando o mal e tudo o que ele representa. Banaliza-se, de novo o mal, como já ocorrera com Bolsonaro em 2018, e nos anos anteriores, quando era figura fácil nos programas de entrevistas da televisão aberta do Brasil.
Todo esse movimento, por mais abjeto que seja, e o é, não pode ser tratado como algo extemporâneo ou digno do realismo fantástico, ao contrário. Ele expressa a organização do debate público brasileiro, e do imaginário da sociedade no qual ele se trava. Marçal é uma expressão política de um ator que emerge com as redes sociais e se beneficia com sua capacidade infindável de atingir as pessoas, produzindo e difundindo quaisquer narrativas, sem compromisso com a história e com a veracidade dos fatos, almejando, como observa o professor João Cézar de Castro Rocha, “likes, lacração e lucro” e poder, completamos.
Sendo assim, ele faz eco a toda a patologia social da contemporaneidade e da sociedade ligada às plataformas digitais, que louva a extinção do conhecimento clássico e humanista, que debocha das diferenças e as acentua, que almeja a construção de uma vida social e econômica restritiva às massas e encapsulada em nichos cada vez menores, que santifica o individualismo cruel, que sonha com a inexistência de regras apenas para as suas ações – que projeta como as únicas corretas. Essa sociedade adoecida que deseja transformar o planeta e a humanidade em um grande teatro de destruição para usufruto de poucos, sempre prontos a cancelarem as vidas inúteis dos incapazes de se adaptarem aos novos tempos e ao seu sistema de crenças.
Temos nas eleições do Município de São Paulo não um pleito em condições normais, mas, repetindo 2018 e 2022, uma confrontação de projetos de país e de sociedade. Uma confrontação que se dará, mais uma vez, entre uma extrema-direita neofascista radicalizada, em processo de unificação, e um campo político fragmentado e desunido, multiforme em termos ideológicos, com parte dele, como o atual prefeito Nunes e seus aliados, associada à extrema-direita – que o despreza de forma profunda –, na esperança de benefícios de seu capital político. A história, de novo, se repete, como farsa, tendo na democracia o grande alvo a ser dizimado.
Numa demonstração inequívoca de associação oportunista de interesses, e de aderência ideológica, setores dos bancos de investimentos e das financeiras instaladas na Avenida Faria Lima, em São Paulo (S.P.), além de notórios financiadores do bolsonarismo nas duas últimas eleições presidenciais, já manifestam seu interesse em normalizar e absorver Pablo Marçal, toda a sua agenda e gramática, deixando clara a alegria de poder contar com uma força política capaz de liderar as massas, ao mesmo tempo em que opera a entrega do Estado aos interesses do grande capital. É um jogo complexo, bruto, mas que está em pleno curso neste momento, sem que saibamos ao certo o resultado final.
Valemo-nos de uma reflexão do professor Antônio Luiz Assunção para afirmarmos que todos esses fatos colocam sob “suspeição a democracia e o progresso soprados de longe”, reforçando o Brasil como um país “preso ao seu passado em um continuísmo de práticas e discursos reacionários”.
Isso evoca, também, uma célebre passagem da obra “O Leopardo”, de Giuseppe di Lampedusa. Numa Sicília do século 19, convulsionada pela revolução, o Príncipe de Lampedusa conversa com Tancredi, seu sobrinho, sobre os acontecimentos, e o aconselha: “se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?”. Essas enigmáticas palavras do romance de Lampedusa ilustram o comportamento de nossas elites, bem como dos pretensos personagens dispostos a promoverem algum tipo de irrupção da ordem.
Explico: uma pequena parcela do povo brasileiro, suas elites, não abre mão do controle do país, mesmo que, para isso, seja necessário operar todo um simulacro de transformações a fim de que tudo retorne ao ponto inicial, sob novas roupagens. É a farsa elevada à condição de realidade a ser narrada e absorvida pelas massas. Uma distopia, fruto de uma disfunção cognitiva patológica. No Brasil, a cidadania e os direitos e garantias fundamentais são, desde sempre, campos restritos a poucas pessoas que se movem para e pelo poder, valendo-se, inclusive, e principalmente, da ilusão alimentada pelo populismo e suas teses incendiárias e rasas, mas capazes de inebriar e estimular a ação das massas.