Como planejar um futuro sustentável para nossas cidades diante da realidade caótica, complexa, desigual e predatória em que vivemos hoje? Com a chegada mais palpável, mais visível e mais compreensível da emergência climática sobre a qual cientistas e representantes de povos indígenas de todo o planeta vinham alertando há tempos, finalmente, a questão da sustentabilidade se tornou um assunto incontornável no debate público.
Se ainda existem extremistas se agarrando a teorias que desafiam os fatos e ofendem a ciência, inclusive com voz para fazer suas pregações infundadas serem amplamente ouvidas, isso é parte da complexidade da nossa organização social, nesta era digital, e das estratégias políticas de quem luta para manter seus privilégios a despeito de qualquer valor coletivo, incluindo paradoxalmente a sobrevivência das cidades e estruturas sociais em que seus privilégios estão ancorados.
Mas, superados os obstáculos inerentes ao surgimento de qualquer tecnologia disruptiva, como a revolução digital ainda em curso, o consenso científico está, finalmente, se tornando consenso social à medida que a sociedade encara eventos extremos cada vez mais frequentes, com impactos devastadores, como a catástrofe no Rio Grande do Sul, no início deste ano, para ficar apenas no exemplo mais recente em nosso país. A sociedade, cada vez mais indefesa frente à nova realidade climática, começa a entender que não podemos seguir produzindo cidades como vínhamos fazendo, especialmente a partir da revolução industrial, quando todos os registros de emissões de gás carbônico, aumento de temperatura e desgelo das calotas polares dispararam em ritmo inimaginável até então e de maneira absolutamente sincronizada.
Com esse consenso se estabelecendo, ainda que na marra, na sociedade, torna-se cada vez mais importante que se entenda que sustentabilidade não é uma comodity nem tampouco um produto industrializado que se compra no Mercado Livre. Pelo contrário, essa lógica consumista que o atual estágio do capitalismo estabelece como premissa está, ela mesma, no centro do problema. Não teremos chance de vislumbrar qualquer saída se não conseguirmos enxergar para além da fumaça que embaça nosso raciocínio com as premissas limitantes que nosso padrão atual de consumo e descarte nos impõe.
Isso significa que não basta construirmos edifícios com os mesmos materiais, sistemas e técnicas que estamos utilizando para, ao final da obra, adicionar um painel fotovoltaico ou um captador de águas pluviais e achar que estamos fazendo a nossa parte. Nem tampouco é sustentável o imaginário coletivo da casinha solta no centro de um gramado no meio do mato, uma vez que a concentração de pessoas é hoje requisito fundamental para uma distribuição mais eficiente de recursos. É mais sustentável viver em comunidades densas do que de maneira espraiada, por haver menos custo, em todos os sentidos, inclusive ambiental, para distribuir energia, água, gás, bens, serviços e as próprias pessoas em sua mobilidade diária.
Mas como atingir um ambiente saudável e sustentável no caos de uma densa aglomeração humana? Antes de tudo, precisamos entender que o conceito fundante da sustentabilidade é o tripé composto pelas esferas ecológica, econômica e social, que precisam se retroalimentar, como explicou o britânico John Elkington quando cunhou a expressão “triple bottom line”, em 1994, dois anos após a primeira grande conferência global sobre o tema, a Rio 92, que ficou também conhecida como Eco 92.
Considerando as 3 esferas apresentadas por Elkington, da mesma forma que não existe uma casa sustentável inserida em um contexto urbano com desequilíbrio ambiental, também não existe cidade sustentável mergulhada em um abismo social como o que nossas grandes cidades enfrentam.
Uma experiência que pode ajudar a enxergar essa relação intrínseca é a comparação do mapa das regiões em que menos incidem chuvas na África com o mapa das regiões mais conflituosas do continente. A coincidência impressionante das manchas escancara que a questão ecológica está inexoravelmente conectada, de maneira umbilical, à questão social.
Talvez a premissa mais importante para remodelar a relação de nossas cidades com a natureza seja uma espécie de pacto de não-agressão. Já deveríamos ter entendido que não adianta lutar contra a natureza, tentar controlá-la ou subjugá-la. Precisamos entender seus ciclos e fazer com que atuem a favor do nosso bem-estar. Um exemplo que ilustra com justeza essa premissa é o projeto de Alejandro Aravena, que foi desafiado a contribuir com um plano de reconstrução para a cidade de Concepción, no Chile, atingida por um tsunami, e planejar defesas para que o estrago não tornasse a acontecer no futuro.
Ainda que os exemplos existentes até então praticamente se resumissem a obras de engenharia, especialmente com muros de contenção, e apesar dos argumentos de que eles agora deveriam ser construídos mais fortes e altos do que antes, a resposta de Aravena foi no sentido oposto: foram incorporados mais de 20 acres de zonas verdes inundáveis. Sua função principal é a absorção do impacto das ondas pelos troncos das árvores e do volume de água pela infiltração que o solo permeável permite. A iniciativa tem a capacidade de reduzir entre 23% e 28% da altura de futuras inundações e entre 34% e 41% da velocidade das ondas. A infraestrutura verde do novo parque opera hoje uma contenção muito mais eficiente e ecologicamente amigável. Em termos sociais, a comunidade local ganhou um parque quase sempre disponível para frequentar, apenas interditado em ocasiões de eventos extremos que, mesmo cada vez mais comuns, não costumam interromper as tardes ensolaradas em que o parque é usado pelas famílias. E o Estado ganhou uma solução de manutenção bem mais econômica do que a inglória luta de um muro contra uma força gigante da natureza.
Aqui no Brasil, esse processo de adaptação urbana pode parecer distante, já que vivemos a distopia de ver desaparecer qualquer traço de planejamento nas nossas cidades, cada vez mais dominadas pela lógica de um suposto “estado mínimo”, eufemismo acatado entusiasticamente pela grande imprensa para o “estado sequestrado” em que vivemos, já que, para as elites, ele não é mínimo. Pelo contrário, para as elites, o Estado é máximo, com suas desonerações, parcerias em que o lucro é todo privado e o risco todo estatal, além de socorros bilionários imediatos, como os vistos durante a pandemia, enquanto o desgoverno de ocasião relutava em oferecer qualquer ajuda para os seres humanos, impactados de maneira muito mais devastadora do que a elite financista que teve prioridade absoluta no socorro. Mas, apesar do cenário político desafiante, a boa notícia é que bastam soluções muito mais simples para evitar impactos na escala dos que aconteceram no sul do país no início do ano.
Muito se falou em não politizar a tragédia, mas o caso do Rio Grande do Sul tem raízes profundamente arraigadas na política ou, mais especificamente, nessa onda antipolítica, que odeia – e luta contra – o papel do Estado como defensor, promotor e operador das demandas da sociedade. Um ódio e uma luta, em última análise, contra a força que o Estado tem para atuar na defesa de direitos básicos de indivíduos que, sozinhos, jamais teriam essa força. O volume de água sem precedentes que desabou sobre o Rio Grande do Sul tem uma infinidade de causas extremamente complexas que nos levaram até esse ponto de emergência climática, mas a intensidade do impacto nas cidades da região está diretamente relacionada a essa negação do Estado como regulador do convívio em sociedade.
Definitivamente, não é coincidência que mais de 500 (QUINHENTAS!) normas ambientais tenham sido flexibilizadas pelo Governo do Estado antes da tragédia, em situação análoga à de um assassinato com dolo eventual, quando se assume o risco de matar, não por imperícia, pois os protocolos de fiscalização ambiental já estavam lá, mas pela mais injustificável imprudência daqueles que propositadamente desmantelaram esses protocolos. O governo chegou ao ponto de apresentar uma indecorosa proposta de dispositivo para “autorregulação ambiental”. Ou seja, a compreensão era, claramente, de que, na seara dos crimes ambientais, basta ao criminoso declarar que não está cometendo nenhum crime para que possa cometê-los à vontade, sem qualquer fiscalização ou importunação.
Na escala municipal, a capital do estado, Porto Alegre, também governada por representante do mesmo espectro político negacionista, simplesmente ZEROU a verba destinada à prevenção de enchentes no ano anterior à tragédia, a ponto de impedir a simples manutenção das comportas que teriam evitado a inundação de boa parte da cidade. O orçamento que, em 2021, contou com 1,7 milhão de reais, no ano seguinte foi cortado impiedosamente para 141 mil reais e, em 2023, foi simplesmente eliminado. Zero. É importante perceber que não há disfarces nem meias palavras. Mesmo diante da tragédia, quando confrontado com o corte de investimentos, o governador alegou simplesmente haver outras prioridades nesta gestão.
Pois é chegada a hora de mudar nossas prioridades. Depois de mais de 5 séculos, talvez seja hora de finalmente dar voz aos que sempre souberam lidar com esse canto do planeta de maneira muito mais cuidadosa e inteligente. Os mais de mil povos indígenas que viviam entre Pindorama e a Amazônia antes da fundação do Estado Brasileiro já tinham uma infinidade de ferramentas para construir cidades muito mais sustentáveis e absolutamente harmônicas com a natureza. Tanto que, ao chegarem aqui, os europeus não tiveram sequer cognição para enxergá-las como as cidades verdes efêmeras que elas eram, em toda sua complexidade e com o equilíbrio holístico daqueles povos nômades.
Trata-se de povos que tomavam todas as suas decisões de maneira coletiva e se organizavam de maneira não hierárquica, com todas as construções iguais e em círculo, sem qualquer destaque especial, com plantações de subsistência em um anel externo ao das casas. Para evitar que a terra exaurisse seus recursos, de tempos em tempos, o anel de plantação era abandonado e outro mais externo era plantado enquanto, no anterior, a terra podia descansar. Essa organização territorial incluía uma curiosidade: seus movimentos migratórios eram regulados pelo tempo da sua arquitetura e “urbanismo”. Depois de aproximadamente 10 ou 12 anos, quando as construções de madeira com palha e/ou barro começavam a apresentar patologias, ao mesmo tempo em que a roça começava a se distanciar muito do centro da aldeia, já se sabia que era hora de partir e deixar aquele local descansar.
Depois da saída de um grupo, de mala e cuia, o que restava de suas cidades, inteiramente compostas por materiais orgânicos, era engolido pela natureza, sem deixar rastros, recompondo e enriquecendo novamente o solo, construindo aos poucos a maior biodiversidade do planeta. A riqueza do solo amazônico, já comprovaram os cientistas europeus, não é um presente da natureza ou obra do acaso. Ela foi forjada ao longo de séculos pelo manejo consciente da terra, a sagrada mãe dos povos indígenas, que sempre usaram como insumo para alimentá-la os próprios materiais daquela arquitetura efêmera e absolutamente sustentável que aqui se praticava e ainda se pratica, sob o manto da permanente invisibilização das culturas tradicionais.
Obviamente essa lógica nômade não cabe na cosmovisão da sociedade 85% urbana do Brasil atual, nem no espaço físico do país em que transformamos esse rico pedaço de terra. Mas, na era do efêmero, talvez a premissa de construir edificações para que durem “para sempre” possa ser a primeira crença limitante a ser deixada para trás. Numa contemporaneidade líquida tão bem descrita por Baumman, em que a única constante é a transformação contínua em todas as esferas da vida, por que a arquitetura e as nossas cidades precisam continuar sendo as únicas coisas sólidas e estáveis, das quais se espera que sigam por muitos anos estáticas depois das nossas próprias partidas? Por que o barro que compõe nossas paredes precisa ser levado ao forno, matando todas as suas propriedades biológicas e impedindo, por exemplo, que ele faça um controle natural da umidade, como faz nas construções indígenas, absorvendo ou liberando umidade quando o ambiente está muito úmido ou muito seco?
Se não é nada provável que possamos voltar a estabelecer uma relação tão umbilical com os ciclos da natureza, que nos torne nômades outra vez, é importante lembrar que aprendizados forjados em experiências não exatamente cabíveis no nosso contexto servem justamente para inspirar a criação de soluções fora do nosso léxico usual – o que chamamos de inovação. E essa é justamente a ferramenta mais necessária quando a saída de uma crise depende de uma mudança comportamental profunda.
Olhar cuidadosamente para o passado, portanto, nunca foi tão fundamental para reinventar o futuro quanto nesta quadra histórica em que estamos. Como diz um dos maiores pensadores de nosso tempo, Aílton Krenak, O futuro é ancestral. Ou não haverá futuro para nossa espécie. É urgente que saibamos olhar, estudar e entender os acúmulos de saberes dos nossos povos autóctones para nos inspirar na invenção de cidades possíveis em nosso contexto, mas que sejam mais sustentáveis, mais permeáveis, mais saudáveis e mais amigáveis, e que consigam equilibrar seus desafios ecológicos, econômicos, sociais, culturais, geracionais, logísticos, ambientais, históricos e geopolíticos com mais cuidado e consciência.