Não. Este artigo não trata das contribuições teóricas dos economistas austríacos (Eugen von Böhm-Bawerk (1851-1914); Ludwig von Mises (1881-1973); Friedrich A. Hayek (1899-1992)), que nasceram no século 19, publicaram a maioria de sua obra perto da metade do século 20 e que devem se revirar nos túmulos quando têm porções de sua obra, toscamente, instrumentalizadas para ampliar a meta-ignorância, em economia, de indivíduos doutrinados pela extrema-direita. Vamos tratar das contribuições de uma intelectual austríaca, mais contemporânea: Ruth Wodak.
Ruth Wodak, não é identificada como “austríaca” pelo nascimento (Londres, 1950), mas por sua trajetória acadêmica: cursou bacharelado em Filosofia, doutorado e pós-doutorado em Linguística na Universidade de Viena, tendo lecionado na mesma instituição, entre 1975 e 2004, nas áreas de Sociolinguística, Psicolinguística e Linguística Aplicada. Wodak desenvolveu a Escola de Análise Crítica do Discurso de Viena, integrando ex-colegas e alunos de doutorado para consolidar uma abordagem pioneira que combina análise histórica e interdisciplinar. Essa abordagem vincula, fortemente, a pesquisa empírica com a análise crítica, revelando práticas sociais ideológicas e opressivas que são invisíveis quando postas sob o foco de análises causais tradicionais. A Análise Crítica do Discurso (ACD), conforme descrita por Wodak, concentra-se nas relações de poder, história, dominação e ideologia e, nessa direção, vê a linguagem como um campo de luta e poder.
É sob a visão desse modo de perscrutar a realidade por meio da análise do discurso, sem obviamente ter a pretensão de aplicá-lo, aqui, em seu rigor metodológico, que este artigo busca oferecer uma possível resposta à questão: o aborto pode ser instrumentalizado como eixo temático do discurso populista no Brasil?
As definições de populismo variam, significativamente, refletindo as diversas abordagens teóricas e metodológicas, mas que conectam no entendimento de que esse fenômeno social é caracterizado por uma retórica que polariza a sociedade em dois grupos antagônicos. O uso do medo, a construção de inimigos, a apelação à nostalgia e o estilo performativo são elementos centrais para a análise desse fenômeno.
As pautas políticas do populismo são diversas e se adaptam ao contexto específico em que surgem. Essas pautas refletem uma abordagem que visa capitalizar sobre o descontentamento e a insatisfação populares, promovendo uma visão política que promete devolver o poder ao povo e proteger seus interesses. Muitos movimentos populistas, especialmente os de ultradireita, defendem valores tradicionais e conservadores. Sob esse último entendimento e com o intuito de responder à questão central deste artigo, é essencial entender como o aborto é tratado no Brasil.
No Brasil, o aborto é legalmente permitido apenas em situações específicas: quando há risco de vida para a mulher, em casos de estupro e quando o feto é anencefálico. No entanto, devido às restrições legais, muitos abortos são realizados de forma ilegal e insegura, resultando em complicações graves para a saúde e, frequentemente, em morte. Segundo o estudo “Aborto e raça no Brasil, Pesquisa Nacional de Aborto 2016 a 2021,” conduzido pelos pesquisadores Debora Diniz, Marcelo Medeiros, Pedro Ferreira de Souza e Emanuelle Goés, o aborto é um evento comum na vida das mulheres brasileiras. A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) 2021 revelou que, aos 40 anos, uma em cada sete brasileiras já realizou pelo menos um aborto. A maioria desses procedimentos foi realizada de forma ilegal. Os dados também indicaram que o percentual de abortos foi maior entre as mulheres mais pobres, tornando-as mais vulneráveis a práticas abortivas que colocam suas vidas em risco. Além disso, foi constatado que, entre as mulheres estudadas, aquelas que conviviam com uma visão mais desfavorável sobre o aborto dentro de seu meio social, apresentavam uma maior propensão a recorrer a métodos abortivos de maior risco.
O aborto não é um tema irrelevante, visto que afeta, por vezes mortalmente, a vida de um percentual significativo de brasileiras. O objetivo central deste artigo foi investigar a possibilidade do aborto ser instrumentalizado como eixo temático do discurso populista no Brasil. Como visto, o populismo pode ser entendido como uma forma de fazer política que utiliza estratégias discursivas específicas para mobilizar apoio, criar identidades políticas e marginalizar oponentes. Nesse contexto, o gravíssimo problema social do aborto pode, sim, se tornar um eixo temático para os populistas, visto que, por meio de artifícios discursivos, o aborto deixa de ser um problema de cunho psicossocial e de saúde pública para se tornar uma questão ligada, exclusivamente, a uma pauta moral, destinada a criar polarização, que leva ao engajamento ou à execração. Dessa forma, os alienados pelo discurso populista passam a considerar quaisquer pessoas que entabulem discussões racionais sobre possíveis ações para evitar mortes maternas causadas pelo aborto como indivíduos pró-aborto e, portanto, como inimigos.