A morte do economista e professor Antônio Delfim Netto, aos 96 anos, é desses fatos que estimula o Brasil contemporâneo a proceder a uma reflexão sobre as últimas décadas de nossa história. Como observa o jornalista Luis Nassif em sua coluna publicada hoje, no jornal GGN, “a morte de Antônio Delfim Netto priva o Brasil do maior de seus economistas”. E digo isso na condição de crítico constante de Delfim”.
Delfim foi um importante personagem, que ajudou a construir a História do Brasil desde a segunda metade dos anos 1960, quando, ainda jovem, foi nomeado Ministro da Fazenda do segundo governo da ditadura civil-militar, do Marechal Arthur da Costa e Silva (1967-1969). Permaneceu no cargo no breve período de governo da junta formada pelos três ministros militares, que, após o avc sofrido por Costa e Silva, impediu a posse do vice-presidente, Pedro Aleixo, um civil, e assumiu o comando do País entre agosto e outubro de 1969, até a posse do novo presidente indicado pelos militares, o General Emílio Médici (1969-1974), de quem Delfim continuaria Ministro da Fazenda.
Foi sua primeira passagem pela administração federal, e ele, um professor da USP, que havia sido recrutado para o Ministério no secretariado do então governador de São Paulo, Laudo Natel, em 1967, quando exercia o cargo de secretário da Fazenda. No governo federal, foi, por sua competência e pela confiança que os militares tinham em seu trabalho, conquistando um poder que, talvez, nenhum outro ministro tenha tido ao longo de toda a história republicana. Ocupou três ministérios ao longo de sua passagem pelo Executivo: o da Fazenda, entre 1967 e 1974, o da Agricultura, entre março e agosto de 1979, e, por fim, a Secretaria de Planejamento da Presidência da República, que possuía status de ministério e que ele elevou à condição de principal órgão da estrutura de governo, entre agosto de 1979 e março de 1985.
Intelectual brilhante, profundo conhecedor do pensamento econômico, do Estado e de seu aparato, Delfim foi dando a forma do modelo da máquina pública e de suas atribuições erigidas durante a ditadura civil-militar, que perduraria até o governo do general João Figueiredo (1979-1985). Uma forma que teve acoplada as ideais dos militares, especialmente os egressos do movimento tenentista da década de 1920, bem como dos oficiais que haviam mantido contato com as forças aliadas na Itália durante a Segunda Guerra, e que, segundo o Professor Francisco Carlos Teixeira em sua entrevista para a TV Vírgula, em março deste ano, voltaram para o Brasil já totalmente cooptados pelos interesses da nova ordem que os Estados Unidos passariam a liderar no pós-guerra (1939-1945). Era um modelo autoritário, intervencionista e propulsor do crescimento econômico, mas não do desenvolvimento, que não se dispunha a democratizar o Estado e seu aparato, ao contrário, muito menos implantar um regime de justiça social. Vivíamos sob uma feroz ditadura, e não poderia ser diferente por todas as circunstâncias políticas do período.
Para o economista e professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), Luiz Henrique Lima Faria, articulista de A Vírgula, “a trajetória de Delfim Netto e seu legado não podem ser compreendidos descontextualizados do cenário econômico global. As decisões políticas e econômicas, por ele tomadas, foram moldadas pelas condições globais da época e, por sua vez, essas políticas tiveram um impacto duradouro tanto no Brasil quanto na sua posição no cenário econômico mundial. A combinação de crescimento econômico rápido sem distribuição equitativa de benefícios, o controle dos salários como instrumento de contenção inflacionária, o aumento da dívida externa, a ampliação da desigualdade social e o agravamento da pobreza são características do período de Delfim Netto na direção da economia brasileira que se refletem até a atualidade. Essas características estão em consonância, em intensidades variadas, com os dilemas enfrentados por muitos países em desenvolvimento que tentavam modernizar suas economias, sob as condições de um mundo cada vez mais interligado. O legado de Delfim Netto, assim, se revela como um espelho das complexidades e contradições de sua época.”
Delfim, na sua primeira passagem pelo governo federal, entre 1967 e 1974, estruturou, com o então ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Veloso, um vasto programa de investimentos na industrialização e na criação de infraestrutura. Foi o período do “milagre econômico”, com grandes investimentos financiados por capitais externos tomados a juros baixíssimos, o que se inverteu de forma radical a partir da primeira crise do petróleo, ainda na primeira metade da década de 1970, criando a chamada “crise da dívida”, que se arrastaria até a década de 1990. Segundo o jornalista Luis Nassif, “nos tempos do “milagre”, o crescimento foi turbinado com aumento do endividamento externo. E a frase preferida de Delfim era que ‘dívida não foi feita para ser paga, mas para ser rolada’. Questionado certa vez sobre a brutal concentração de renda, Delfim afirmou que era preciso “primeiro crescer o bolo, para depois dividi-lo”, clarificando o seu pensamento sobre a justiça social, o que lhe valeu ataques pesados por parte dos economistas de oposição, que sempre denunciaram o “milagre econômico” por seus aspectos perversos de superconcentração e de superendividamento.
A “crise da dívida” viria a fazer ruir as altas taxas de crescimento. Quando o terceiro presidente da ditadura, o general Médici, em 1974, entregou o governo ao seu sucessor, o general Ernesto Geisel, o Brasil já estava mergulhado em uma profunda crise econômica. Delfim, responsável pelo “milagre”, foi mandado para a França, entre 1975 e 1978, como embaixador, um exílio dourado, haja vista que o grupo de militares próximos de Geisel não nutria simpatia alguma por ele. Retornaria ao governo em 1979, com o general Figueiredo.
O País, que já vinha de um processo de crescimento industrial e urbano acentuado desde a primeira metade dos anos 1950, retoma o dinamismo do crescimento, mantendo, entretanto, as graves desigualdades sociais. Por tentar resolver esse aspecto dramático, o presidente João Goulart foi deposto em abril de 1964 pelos militares e civis. As elites brasileiras, de ontem e de hoje, e provavelmente do futuro, são e serão extremamente refratárias a qualquer tipo de alteração do status quo, razão pela qual não se acovardam em agir, de forma brutal, contra governos, políticas públicas e investimentos que tenham por objetivo promover a justiça social e a ampliação do mercado consumidor interno, a partir da elevação da capacidade de renda da população. Esse é um dos males estruturantes do Brasil, desde o início de sua conquista em 1500 pelos portugueses.
Ao retornar ao governo em 1979, a economia brasileira ainda permanecia imersa na grave “crise da dívida”, solucionável apenas na última década do século 20. Sua rápida passagem pela pasta da Agricultura foi alvo, na época, de gracejos de toda ordem, pois todo o País sabia dos pendores de Delfim para a chefia da área econômica do governo. A oportunidade surgiu quando Mário Henrique Simonsen pediu exoneração e Figueiredo foi buscar o antigo ministro da Fazenda para o posto de Chefe da SEPLAN, fortalecida como o órgão central da economia do governo. Sua nomeação foi recebida com grande entusiasmo pelo empresariado nacional, que sonhava ver repetido o “milagre’ de fins dos anos 1960 e início dos anos 1970, mas não foi isso o que ocorreu.
Foram seis anos de crise e de negociações com entidades como o Fundo Monetário Internacional (FMI), que periodicamente enviavam suas equipes ao Brasil para análise do quadro fiscal e imposição de novas exigências de arrocho. O economista e professor Arlindo Vilaschi afirma que foi no governo Figueiredo, no contexto de toda a crise da dívida, que o neoliberalismo e todo o seu receituário, começou a ser implantado no Brasil, tendo Delfim Neto como seu operador no comando da economia.
Delfim guardava em si, como lembrou o professor Luiz Henrique, as contradições de seu tempo. Ministro de uma ditadura civil-militar, seguiu a gramática da mesma, tendo, em 1968, assinado o AI-5, um ato que sempre defendeu como necessário à época, e mantido um silêncio sepulcral sobre as prisões arbitrárias, torturas sistemáticas e todo o aparato de assassinatos montados pela repressão. Se na política mantinha esse comportamento leal aos generais ditadores, na economia se viu premido pelas circunstâncias da grave crise da dívida. Mas, mesmo assim, como afirma o professor Arlindo Vilaschi, “Antônio Delfim Netto deixa como legado para quem se quer conservador a importância que dava ao pensamento crítico construído a partir de leitura atualizada e contextualização do que lia. Leitura e interpretação de texto que tanta falta faz hoje à direita radical brasileira que prefere aderir acriticamente ao receituário raso do neoliberalismo que nada tem a ver com realidade econômica e social do País.”.
Após o fim da ditadura, Delfim se lança na vida política, tendo exercido diversos mandatos como deputado federal por São Paulo, entre 1987 e 2007, primeiro pelo antigo PDS, depois, pelo então PMDB. Foi deputado federal constituinte e uma das vozes mais respeitadas por todos os colegas congressistas, mesmo aqueles que, na oposição à ditadura civil-militar, o combatiam de maneira feroz. Em 1985, o presidente eleito Tancredo Neves (PMDB), chegou a apontá-lo como o futuro líder da oposição ao seu governo. Nem Tancredo viveu para ser presidente, nem Delfim exerceu o papel de líder da oposição ao governo civil, ao qual se adaptou de forma bastante disciplinada e colaborativa. Nos dois primeiros mandatos do presidente Lula (2003-2010), foi um conselheiro informal do chefe de Estado, e dos mais atuantes.
Isso demonstra a contradição do homem público e a grandeza do intelectual que foi Antônio Delfim Netto. Um homem do seu tempo, com todos os paradoxos que isso traz em si, e que, como poucos, fez a História do Brasil de forma intensa desde a segunda metade dos anos 1960. Amado por muitos, odiado por outros tantos, Delfim jamais passava despercebido em quaisquer ambientes. Cultivava amizades nos diversos campos políticos, mesmo naqueles que sempre criticava com sua inteligência e ironia das mais ferinas. Foi colunista da revista Carta Capital durante décadas, uma publicação de notória tendência progressista.
Hoje, como disse o jornalista Luis Nassif, o Brasil perdeu o seu grande economista. Para o ex-secretário da Fazenda do Espírito Santo, José Teófilo de Oliveira, superintendente-adjunto do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), quando Delfim exerceu o cargo de ministro-chefe da Secretaria de Planejamento da Presidência da República (1979-1985), no governo do General João Figueiredo, “a legião de admiradores de Delfim Netto tem na sua linha de frente seus ex-alunos, que se beneficiaram do seu conhecimento excepcional. Grande professor que formou uma leva de ótimos economistas. Tive um grande privilégio de fazer parte de sua equipe no Ministério do Planejamento nos anos 1980/85. Ali pude constatar sua enorme capacidade de liderança. Sempre atencioso, gentil e paciente, em muitas oportunidades exibia seu vasto conhecimento científico, na Economia, Matemática e na Estatística. Partiu, mas deixou um enorme legado.”
Essa capacidade de Delfim, ao longo de seus anos como czar da economia brasileira, em criar e manter equipes competentes, sempre foi uma característica das mais ressaltadas. Isso corrobora a sua compreensão do Estado e do seu aparato, e da necessidade de geri-lo com qualidade. A memória não permite que sejam deletados os feitos de nenhum de seus personagens. Para sempre, Delfim Netto será lembrado como um personagem contraditório, mas fundamental para a História do Brasil.