Na tarde de 16 de abril de 1984, há quarenta anos e um dia, no Vale do Anhangabaú, em São Paulo, ocorria o último comício da maior campanha cívica já vivida pelo Brasil até aquela época, as “Diretas Já”. Foram milhões de brasileiros que acorreram às ruas, usando amarelo, lutando pelo direito de votar livremente para presidente da República.
O Brasil, em 1984, vivia o processo histórico que resultaria no fim da longa ditadura civil-militar, iniciada em 1964. A campanha das “Diretas Já”, de aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional apresentada por um jovem deputado federal de Mato Grosso, Dante de Oliveira (do então PMDB), seria o grande elemento histórico catalisador das emoções do povo brasileiro, de seu desejo de ver encerrado o longo ciclo ditatorial, de superar a grave crise econômica que mantinha a inflação em níveis elevados desde a primeira metade da década de 1970, com o fim do chamado “milagre brasileiro”. Mais que votar livremente no presidente da República, o imaginário brasileiro desejava uma mudança na condução do país, na melhoria das condições de vida de todos, de efetivação de uma justiça social.
Desde a constatação do caráter irreversível das consequências danosas do fim do “milagre econômico”, a ditadura, pressionada pela oposição de uma sociedade civil cada vez mais organizada e atuante, foi negociando a flexibilização de toda a legislação e dos atos de exceção. Seus articuladores políticos conseguiram negociar com a oposição institucionalizada, concentrada no MDB, uma saída para a crise e que pavimentasse a estrada para o fim do regime, que preservasse alguns dos seus principais interesses, sempre mantendo viva a projeção da tutela militar, como exposto pelo Professor Francisco Carlos Teixeira em entrevista para A Vírgula.
Era a transição, como se falava na época. A revogação do Ato Institucional nº 5/1968, em 1978, o fim do bipartidarismo em 1979, e, principalmente, a anistia, também em 1979, além da emenda constitucional que tornou direta a escolha dos governadores de Estado, em 1980, foram marcos legais desse processo histórico. A ditadura ia cedendo, revogando as leis de exceção que impusera ao longo de sua história iniciada em abril de 1964, mas preservando o poder e a influência dos militares.
A lei de anistia é, com certeza, a mais escancarada dessas iniciativas, uma vez que incluía entre os atingidos tanto os presos políticos, exilados, os que tiveram seus direitos políticos cassados e, também os militares e civis que participaram de todo o aparato repressivo durante a vigência da ditadura. O ex-deputado federal José Genoíno, do PT de São Paulo, em entrevista para A Vírgula definiu esse processo como um grande acordo entre os próceres do regime e a oposição emedebista. Esse acordo garantia a anistia de todos os perseguidos e presos, ao mesmo tempo que isentava de culpa os responsáveis e, principalmente, mantinha intactas as bases do poder militar e os mecanismos de que este se vale para projetar sua tutela.
As eleições diretas dos governadores de Estado, ocorrida em 1982, teve na oposição, agora dividida em vários partidos, a grande vencedora nos maiores estados da federação. PMDB e PDT controlavam os governos dos Estados mais populosos e ricos. Esses governadores, inclusive alguns eleitos pelo partido que se mantinha organicamente ligado à ditadura, o PDS, passaram a desempenhar um grande protagonismo político, sendo essenciais nos avanços da luta pela redemocratização do país.
O que seria uma simples Proposta de Emenda à Constituição (PEC), apresentada pelo deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT), acabou servindo de estopim para que as lutas pela redemocratização, que vinham desde a segunda metade dos anos 1970, ganhassem as ruas do Brasil de forma espetacular, arrastando milhões de brasileiros. Os primeiros quatros meses de 1984 foram frenéticos, com comícios cada vez maiores realizados nas grandes cidades contando com a participação direta dos govenadores de oposição, PMDB e PDT, e das organizações da sociedade civil, especialmente do movimento sindical em processo de reconstrução, dos estudantes e das Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica.
O comício do Vale do Anhangabaú, há exatos quarenta anos, foi o último da grande campanha cívica que contava com a simpatia, inclusive, do então vice-presidente da República, o mineiro Aureliano Chaves e de parte do PDS, liderada pelo deputado federal capixaba Theodorico de Assis Ferraço, como ele relatou em sua entrevista para a série “Construtores do Espírito Santo” de A Vírgula. Foram centenas de milhares de pessoas que lotaram o centro histórico de São Paulo naquela tarde, unidas pelo desejo de mudar o Brasil. Todos os personagens que iriam protagonizar a vida política do país nas próximas décadas estavam lá, e discursaram para a massa de brasileiros.
A PEC do deputado Dante não foi aprovada. Era o dia 25 de abril de 1984 e o Congresso Nacional votou com a capital da República sob estado de emergência, decretado pelo então presidente, o general João Figueiredo. O comandante militar do planalto, general Nilton Cruz, um homem da comunidade de informações, assumiu pessoalmente a repressão aos manifestantes que tentaram se dirigir ao Palácio do Congresso. Derrotada a Emenda Dante de Oliveira, as forças políticas de oposição, aliadas a setores que desembarcaram do PDS, comandados pelo então Presidente Nacional da sigla, o senador José Sarney, do Maranhão; articularam a participação no colégio eleitoral e se preparam para a vitória. Trouxeram para a disputa o então governador de Minas Gerais, Tancredo Neves, do MDB, partido ao qual Sarney se filiou para disputar como vice no colégio eleitoral. Em janeiro de 1985, Tancredo e Sarney foram eleitos. Um governo civil, o primeiro desde 1964, iria tomar posse. Tancredo, doente, não assumiu e faleceu posteriormente em abril daquele ano. Coube a Sarney conduzir o primeiro governo civil e, desta forma, ir pavimentando a estrada para que a redemocratização, quer teve na Constituição de 1988 o seu grande marco, se consolidasse.