A Era das Ilusões, se é que algum dia existiu, acabou para a classe política. Isso tem provocado mudanças substanciais nos jogos e nos grupos políticos que disputam o controle e o exercício do poder, não apenas no Brasil, mas em escala global. É da natureza da política que ela seja o palco para a polarização entre os distintos grupos em disputa e suas agendas. O que temos de novo é a radicalização de um desses polos, o da extrema-direita, que não reconhece a disputa como algo natural, e sim como uma guerra, travada não contra adversários, mas contra inimigos a serem cancelados.
A vida política no Ocidente, após o fim da grande guerra de 1939-1945, esteve sob o predomínio do Estado de Direito de matriz liberal. Este, hoje, se encontra sob ataque brutal da extrema-direita, que busca conquistá-lo para suprimi-lo. Esse campo político localiza no fascismo histórico, das décadas de 1920 e de 1930, na Itália e na Alemanha, as bases fundantes de suas estratégias e táticas, modernizando-as e adaptando-as a este tempo, valendo-se do competente manuseio das tecnologias de informação.
Impressiona como a classe política brasileira, especialmente os setores de centro, de centro-direita e de direita, está viciada no consumo de narrativas propositalmente falsas. Isso gera um sistema de crenças errôneo e, no limite, à subordinação, transformação e, mesmo, à supressão dessa classe política. O livro “Biografia do Abismo”, de Felipe Nunes e Thomas Traumann, é uma obra rica na análise do cenário brasileiro. Para além da polarização calcificada, aquela que bane a razão de seu universo analítico e operacional, a obra, e a percepção do que ela expõe, demonstra a imposição do radicalismo político como o grande motor de toda a dinâmica histórica atual – uma tese corroborada por um dos grandes pensadores brasileiros contemporâneos, o historiador e professor de literatura João Cezar de Castro Rocha (UERJ).
A extrema-direita soube romper com a tranquila acomodação do sistema político brasileiro, que sempre operou com base na estratégia de conciliação de classes e de interesses diversos. Ela sabe que esse modelo apodreceu, vítima de suas próprias características e contradições. Por isso, radicaliza a política, politiza a vida em todos os seus aspectos para, ao fim, afastar a política do cenário histórico e conseguir manipular livremente toda a sua dinâmica. Essa estratégia segue uma cartilha aplicada em nível mundial pela chamada “Internacional Populista de Extrema-Direita”, que tem no estadunidense Steve Bannon sua, até agora, mais eloquente expressão.
O empoderamento do extremismo de direita pode ser atribuído, entre outros fatores, à capacidade que tem de “abrir os portões do inferno”, dar voz, expressão e legitimidade a todo o imaginário social e às estruturas conservadoras e reacionárias sobre as quais se estruturou o Brasil desde sua formação em 1500.
Uma das estratégias operadas pela extrema-direita, corroborada pelos atores políticos e pelo imaginário social brasileiro, conservador em sua matriz fundante, é criar e disseminar uma narrativa de luta contra grupos radicalizados à esquerda. Nada mais falso. Há muito, desde a década de 1990, o mercado político brasileiro aceitou o caráter binário das eleições e do seu sistema partidário, que está no lado oposto do que seja a radicalidade. Isso levou à legitimação dos “partidos da ordem”, sobre os quais PT e PSDB exerceram liderança inconteste, ao menos até 2018, no caso do segundo. O PT, por ser o único partido brasileiro estruturado em bases mais sólidas, ainda resiste, com influência notória sobre o campo político progressista e democrático, apesar de seus desgastes e de seus erros.
O campo político progressista e democrático, que se aglutinou nas lutas pela redemocratização, a partir da segunda metade dos anos 1970, sempre achou que persistiria, embora fracionado entre os distintos “partidos da ordem”, a formular a agenda deste país, mesmo após a redemocratização. Ele estava enebriado, especialmente, com o texto final da Constituição de 1988, que possui notória influência de seu ideário. Não entendeu que o mundo mudou, e muito, ao longo desses quase 40 anos, e que ele deixou de exercer esse protagonismo.
O Estado de Bem-Estar Social, uma criação do pós-1945, destinado a conter o avanço socialista sobre o ocidente, foi sendo erodido desde a década de 1970 e das crises estruturais do capitalismo a partir de então. Nossa Constituição, nesse sentido, nasceu velha, reforçando a modernidade tardia do país em todas as áreas, recepcionando esse modelo de Estado que, logo após sua promulgação, seria meticulosamente desarticulado. Em seu lugar, de forma retumbante, foram se firmando as bases do neoliberalismo, que funciona sob a hegemonia de uma forte crença no individualismo e na exclusão, sob o controle do capital financeiro e especulativo.
Michel Foucault, o grande pensador francês, já havia cartografado isso nos anos 1970-1980. Coube a Pierre Dardot e Christian Laval, em seu livro “A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal”, escanear essa realidade. Segundo eles, desde o final dos anos 1970, prevalece, de forma crescente, uma nova razão, o neoliberalismo, que “define certa forma de vida nas sociedades ocidentais e, para além delas, em todas as sociedades que as seguem no caminho da ‘modernidade’ (…) impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada”.
É sobre essa nova razão, que desestabilizou e suprimiu a anterior, que se fundam o imaginário e o modo de viver de nossa sociedade, nos tempos atuais, com todos os inevitáveis conflitos e tensões.
A extrema-direita soube interpretar essa gramática, pois possui com ela relações de plena identidade e uma origem comum. Ela percebeu as brechas pelas quais se penetra no mais profundo da sociedade e de seu sistema de crenças e de pensamento, e os radicalizou a seu favor. Aliado a isso, move toda uma máquina de produção e difusão de um universo paralelo, fruto de uma disfunção cognitiva, o que o aparta da realidade histórica como ela é e, paradoxalmente, forja a distopia na qual se insere e que tenta impor como real e generalizada.
Desde 2018, no Brasil, os partidos de centro, centro-direita e de direita viram suas bases eleitorais moverem-se em direção à extrema-direita, devotando-lhe toda reverência e acatando a sua liderança. Não restou a esses partidos, nem aos seus membros e lideranças, outra saída que não a de acompanhar o movimento que, abaixo de seus pés, moveu ideologicamente o país.
Está sendo fácil, pela ausência do contraditório ou de competência para difundi-lo, sustentar a falaciosa narrativa de que o outro polo, o do campo político progressista e democrático, no qual se inserem as esquerdas, pratica o radicalismo. Nada mais falso, tendo em vista o caráter conciliatório das forças que integram esse campo. Mesmo as esquerdas, uma vez no poder, sempre operaram a conciliação, agindo como “partidos da ordem”, que se submetem ao império da Constituição e das leis, e praticam a agenda neoliberal, ainda que de forma envergonhada. Mas foi essa narrativa falaciosa, e seus signos, o que se fixou no imaginário político, que a acatou e a recobriu com os mantos sagrados da verdade.
O resultado disso está diante de nós. Um polo agressivo e desestabilizador enfrenta um oponente que, de forma surreal, age como se fosse normal a distopia dos tempos atuais e não constrói os meios concretos de fazer o necessário contraponto.
Neste ano eleitoral, já começamos a sentir a força dessa narrativa, com sua capacidade de coagir o campo político progressista e democrático, estigmatizando-o. Isso faz com o que atores políticos pragmáticos dele se afastem, com receio de perdas eleitorais. Na polarização cristalizada, tudo é meticulosamente construído para demonstrar que os atores políticos pragmáticos devem manter-se afastados do campo político progressista e democrático, conservando-se independentes ou, de preferência, cerrando fileiras com os extremistas de direita, seja informalmente, seja por identidade com o seu imaginário conservador de matriz reacionária.
Atores políticos de centro, de centro-direita e de direita vão se aproximando das agendas e da gramática da extrema-direita. Esta os considera instrumentos úteis, mas descartáveis, de construção do seu projeto político de domínio do Estado, do imaginário político e do conjunto da sociedade. Poucos atores políticos estão tendo o discernimento de entenderem essa dinâmica e de assumirem, de forma consciente, posturas próximas daquilo que esperamos que prevaleça em toda Democracia. A extrema-direita é ardilosa, sabe mobilizar os sentimentos mais profundos do povo e os instrumentaliza a seu favor. Dessa maneira, coage, de forma direta ou indireta, toda a política, que deseja dominar de forma autocrática.
É notório que a extrema-direita repele não só o campo político democrático e progressista, seu inimigo preferencial, mas também qualquer outro campo que não possua o seu DNA extremista e fanático. Isso me remete a história de Franz von Pappen, líder dos católicos conservadores alemães, em 1933. Trata-se de uma história bem ilustrativa, que se coaduna com tudo o foi que dito. Após sucessivas eleições, os nazistas elegeram parlamentares que, em aliança com outros partidos, poderiam controlar o parlamento e fazer de seu líder, Adolf Hitler, o Chanceler da Alemanha. O Presidente, General von Hindenburg, resistia em nomear um antigo cabo do Exército Imperial para a chefia do governo. Von Pappen lhe assegurou que poderia fazer isso com toda a tranquilidade, pois ele, seu partido e as demais agremiações conservadoras, controlariam Hitler e os nazistas. Assim, convencido, Hindenburg nomeou o líder nazista. Em 1934, já com o controle efetivo do Estado em suas mãos, Hitler afastou von Pappen de seu cargo de Vice-Chanceler e o nomeou Embaixador na Áustria e, posteriormente, na Turquia. Não era mais necessário para o projeto de poder nazista, que se arrastaria até 1945.