Mesmo antes de começar a campanha eleitoral, o tão chamado voto evangélico já estava em disputa. A esquerda percebeu, um pouco tarde, a meu ver, que não dá para ignorar o conjunto de fiéis que hoje representa cerca de 30% da população brasileira. Os quase 22 milhões de votos dos evangélicos em Bolsonaro, em 2018, e o caráter decisivo que isso tomou para a eleição do ex-presidente suscitou a ideia de que o apoio do eleitorado evangélico pode decidir quem entra e quem sai da cena política.
Uma das ações recentes do Partido dos Trabalhadores (PT) a fim de estreitar o diálogo com este segmento foi o lançamento da “Cartilha Evangélica: Diálogo nas Eleições”. Produzida pela Fundação Perseu Abramo, seu objetivo é orientar seus candidatos no modo de se aproximar desse grupo de fiéis. Na minha avaliação, o ponto mais importante do documento é reconhecer a presença das igrejas evangélicas nas periferias e a sua relevância neste contexto. No entanto, as diretrizes sobre as temáticas a serem abordadas com os eleitores cristãos acabam não convergindo para as questões estruturais da periferia, que poderiam fazer com que o evangélico se identificasse com o partido ou o candidato.
As orientações da cartilha giram em torno da valorização da família, da fé e da liberdade religiosa e de defender a verdade e os direitos humanos, além do que os candidatos não devem fazer, por exemplo, referir-se aos evangélicos como um grupo homogêneo. Contudo, realçar a garantia desses valores durante a campanha eleitoral, trazendo esse discurso para o centro das propostas do candidato, não faz sentido já que todos esses princípios estão garantidos na Constituição. É preciso mostrar aos evangélicos que vivemos em um país onde não precisamos lutar pelo direito de exercer a fé, pois este está garantido na Carta Magna e nenhum governo irá interferir no funcionamento das igrejas. Isso posto, como, então, dialogar com os evangélicos?
Para o teólogo Rodolfo Capler, que é pastor da igreja Batista Alternativa, a esquerda hoje fala de questões importantes a serem debatidas, como banheiro unissex e linguagem neutra, mas que não se fazem tão urgentes no cotidiano da maior parcela da população da periferia, onde vive uma boa parte da comunidade evangélica. “É um tiro no pé quando os candidatos de esquerda usam esses caminhos, que não os levarão ao coração dos evangélicos”, acredita. Na visão de Capler, os candidatos progressistas deveriam se preocupar em abordar questões básicas, como fome, precarização da mão de obra, desigualdade de gênero, feminicídio, trabalho infantil, encarecimento do transporte público e tantas outras que tocam diretamente o povo brasileiro.
Nesse sentido, não basta falar de família e de liberdade religiosa, visitar igrejas e se aproximar de pastores na tentativa de conquistar votos. Essas ações já são feitas pela direita e se a esquerda as repete são vistas como táticas eleitoreiras. A busca dos candidatos progressistas por um diálogo com os evangélicos é, de fato, uma tarefa árdua, pois a visão de mundo difundida nas igrejas há décadas traduz uma relação muito negativa entre esquerda e evangelho. Mas muitos desses fiéis que hoje rejeitam a esquerda e são atraídos pela retórica da extrema-direita votaram no Lula em 2002. Não se trata de trazer a identidade religiosa para o foco da campanha política. É sobre propor projetos com o objetivo de resolver as mazelas sociais que atingem o brasileiro, pobre e trabalhador que, inclusive, pode ou não ser evangélico.