LEONARDO QUARTO
Jornalista há mais de 50 anos, colunista do jornal O Globo e autora do recém-lançado “Amazônia na encruzilhada: O poder da destruição e o tempo das possibilidades”, Míriam Leitão, em entrevista exclusiva para A Vírgula, destrinchou o mergulho que realizou na Amazônia para a produção do livro, falou sobre os avanços e desafios econômicos postos para o governo e refletiu sobre as possibilidades de desenvolvimento sustentável.
“O agronegócio presta um desserviço a si mesmo quando ele abraça causas tão retrógadas achando que está se defendendo. Foi esse equivoco que levou este setor a ser tão aderente ao governo de extrema-direita pelo qual passamos. Gostaria muito que o agronegócio brasileiro, que é tão importante para o país, conseguisse entender quais são realmente seus interesses”, afirmou.
Ao analisar o primeiro ano econômico do governo Lula, Míriam destacou os bons índices alcançados mesmo diante de “bombas” que foram deixadas pelo governo anterior, entre elas a desoneração dos combustíveis e o pagamento de precatórios. Sobre política, a jornalista foi categórica: “Vivemos durante todo governo Bolsonaro sob o risco de um retrocesso histórico”.
Míriam Leitão nasceu em Caratinga/MG, mas se mudou para o Espírito Santo onde iniciou a carreira e a faculdade de Jornalismo, esta concluída em Brasília.
Trabalhou nos jornais O Diário, A Tribuna e A Gazeta nos anos 1970, quando foi presa e torturada pela ditadura militar no 38º BI, em Vila Velha.
Leia a entrevista completa abaixo:
A Vírgula: O governo federal fechou o primeiro ano com bons números na economia. Qual o melhor caminho para manter o ritmo?
Míriam Leitão: São muitos os desafios. No ano passado o resultado foi surpreendente. A inflação ficou dentro da meta apesar das bombas que foram armadas pelo governo anterior. Uma delas foi a desoneração do combustível para forçar uma queda de inflação no segundo semestre de 2022. Então, ao assumir, o governo Lula teve de reonerar o combustível porque são combustíveis fósseis. Em defesa do meio ambiente e até mesmo para fechar as contas é necessário que se cobre imposto sobre isso. Outro exemplo de bomba foram os precatórios (dívidas do Estado já em condenação judicial definitiva), que foram também deixadas sem pagamento. Tudo isso foi assumido pelo atual governo e no final das contas o país cresceu mais do que o mercado imaginava (cerca de 3%), a inflação ficou dentro da meta (4,6%) e essas bombas foram desarmadas.
Qual sua avaliação do plano de reindustrialização gerenciado pelo Vice-Presidente e Ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin?
Acompanhei com sentimentos mistos este lançamento. Se por um lado dentro deste programa há o que podemos chamar de novo, que busca realmente acelerar o crescimento, existem também práticas antigas. E o que chamo de antigo aí? O Brasil já teve várias políticas industriais, desde o período militar, que beneficiavam um setor ou uma empresa em específico. A última vez que tentaram esta política equivocada foi nos governos Lula e Dilma, onde eles criaram os campeões nacionais, ou seja, escolher uma empresa para que ela recebesse incentivos e créditos subsidiados do BNDES e a partir disso esperar um crescimento do país. E este programa deu muito errado. Desta forma, defendo que a melhor política industrial é a que faz o país como um todo ser mais competitivo. Assim, as empresas que forem mais eficientes vão se beneficiar deste ambiente de negócios melhor. Acredito que neste plano de reindustrialização tem um pouco destes dois lados. Não sei exatamente para onde vai, mas vou fazer entrevistas nesta linha. É preciso fiscalizar de perto para evitar que o programa seja capturado pelo lobby de sempre.
Recentemente você lançou “Amazônia na encruzilhada: O poder da destruição e o tempo das possibilidades”. Qual sua avaliação das políticas ambientais do atual governo?
Para construir este livro fiz uma caminhada no tempo. Um apanhando das políticas que deram certo e das que não foram bem sucedidas, justamente para entender o porquê de elas não terem funcionado. Amazônia na encruzilhada é um mergulho na Amazônia mostrando o que é a Amazônia. Falei com ambientalistas, com líderes indígenas, com formuladores de políticas públicas, com Ibama, ICMBIO, pecuaristas, enfim, muita gente. É um mergulho na Amazônia por vários ângulos. O Brasil já desenvolveu políticas contra o desmatamento que deram muito certo. Principalmente com a Marina Silva nos governos Lula. Nesta época o desmatamento caiu de forma muito forte. Então eu fui ver porque isso funcionou, seja no combate direto ao crime ou na criação de fórmulas legais e normativas que inibiram o desmatamento. Também fiz um mergulho no desmonte destas políticas que aconteceu principalmente no governo Bolsonaro. Investiguei como a burocracia e a Justiça resistiram para evitar o pior, para proteger os indígenas e todo o ambiente na Amazônia como um todo. É uma grande reportagem, um esforço enorme para mostrar ao leitor a realidade do lugar. Viajei para São Félix do Xingu, o local onde tem mais desmatamento na Amazônia. Fui lá para ver como é possível combater o crime e mostrar quem está fazendo certo e quem está fazendo errado. É uma declaração de amor a Amazônia, eu amo a Amazônia e cada vez que vou lá aprendo muito.
Como conciliar o agronegócio com a preservação ambiental?
Acho que é super compatível. Fazendo reportagens já vi muitos exemplos positivos desta conciliação. Tanto em Paragominas quanto em São Félix do Xingu, há exemplos de produtores que respeitam a lei, a reserva legal, a mata e produzem no restante da área de uma forma que não agride o meio ambiente. O problema é que são sempre exemplos isolados. O agronegócio tem uma visão equivocada da defesa do seu interesse. Ele vai ao Congresso e sustenta atitudes que são muito nocivas ao meio ambiente. Anistia para quem desmatou ou grilou terras, redução de terras indígenas, enfim. Não conseguem ver que o sucesso do agronegócio brasileiro vem justamente da preservação do meio ambiente. Por exemplo, as árvores da Amazônia transpiram. Essa transpiração evapora e cria os chamados rios voadores. Esses rios permitem que chova em outras partes do país. Ou seja, ao desmatar a Amazônia as áreas agriculturáveis do país são reduzidas. O Brasil tem muita terra que pode ser transformada da pecuária para a agricultura, a própria pecuária pode ser menos agressiva, enfim. Mas o agronegócio presta um desserviço a si mesmo quando ele abraça causas tão retrógadas achando que está se defendendo. Foi esse equivoco que levou este setor a ser tão aderente ao governo de extrema-direita por qual passamos. Gostaria muito que o agronegócio brasileiro, que é tão importante para o país conseguisse entender quais são realmente seus interesses.
Um dos temas mais sensíveis na Amazônia é o povo yanomami. E em 2023 foi registrada uma pequena alta no número de mortes entre eles, subindo de 343 para 363 em relação a 2022. Ao que você atribui isto?
Com pouco mais de 20 dias de governo o presidente Lula foi visitar os yanomamis com cerca de oito ministros. Desta forma há uma tentativa séria de desenvolver uma política para eles. Tenho conversado muito com pessoas do governo para saber o que pode estar dando de errado nesta política. E muito se fala que falta sinergia para atuar de forma mais eficiente. O crime ambiental e contra os indígenas se aprofundou muito no governo Bolsonaro, o ataque a terra yanomami foi muito forte. Construíram aeroportos, pistas de pouso, ou seja, é muito dinheiro que está em jogo. Para se levar uma pá carregadeira que custa cerca de R$ 1 milhão para as terras indígenas, ou uma draga que custa R$ 2 milhões, com esta logística difícil do território amazônico, é porque tem muito dinheiro por trás da extração ilegal de ouro nesta região. E isso foi muito estimulado no governo Bolsonaro. Não é fácil fazer este recuo.
Há no atual governo um diálogo com os indígenas que não existia antes, mas o aumento de mortes pode ser resultado de muitos fatores, desde subnotificação do governo anterior como consequência das doenças já pré-existentes. As pessoas já estavam com malária, já estavam subnutridas, ou seja, em situação de crime contra a humanidade. Vimos as cenas do socorro chegando, mas não é de repente que se salva todo mundo. Acredito que há consciência de que é preciso fazer mais por este povo.
Você já viveu muito na política nacional. Inclusive os terrores da ditadura militar. Como avalia o atual momento após quatro anos de bolsonarismo no poder? O Brasil correu mesmo um risco institucional?
Desde o primeiro momento eu tive este sentimento. Vi em fatos e palavras e também nos movimentos políticos que existia uma chance real de golpe. Vivemos durante todo governo Bolsonaro sob o risco de um retrocesso histórico. Por isso escrevi um livro que se chama “Democracia na Armadilha” em 2021 e que reuniu uma coletânea de colunas que fiz alertando para o risco que a democracia correu no governo Bolsonaro. Deixei isso muito claro no meu jornalismo. O último texto deste livro tem um título muito representativo sobre o que eu penso deste período: “A democracia morre no fim deste enredo”. Aquele era um enredo para matar a democracia e nós escapamos. Precisamos aprofundar não só as investigações, mas nós mesmos, jornalistas, temos que buscar entender porque que o país passou tão próximo de uma tragédia como esta.
Onde comprar:
Amazônia na encruzilhada: O poder da destruição e o tempo das possibilidades:
Em novo livro, Míriam Leitão traça um retrato da situação da Amazônia e mostra que é possível e desejável que haja uma conciliação entre a questão ambiental e a área econômica
“Em anos recentes ficou evidente que temos à nossa frente dois caminhos. Sempre houve essa encruzilhada, mas é como se o Brasil tivesse se aproximado mais do ponto da bifurcação em que, se persistirmos no erro, poderá não haver volta. (…) A Terra sem a Amazônia pode ficar inviável para os bilhões de humanos. Em conversa com cientistas ao longo das últimas duas décadas, fiquei profundamente convencida disso. Os anos recentes mostraram como estão certas as pessoas que dizem que a Amazônia nos coloca e nos tira do mundo. Essa é a encruzilhada.”