FELIPE IZAR
Durante a semana voltou à tona o caso do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Na pauta, sob a ansiedade jornalística e política, a popular pergunta que percorre incerta por mais de cinco anos: “Quem mandou matar Marielle? E por quê? Uma vez aventadas as conversas do miliciano Ronnie Lessa, apontado como o executor do crime, com a Polícia Federal, as linhas dos portais ganharam contornos, principalmente no site The Intercept Brasil, que cravou a delação de Lessa: o ex-Bope, segundo o veículo, delatou o ex-deputado estadual e conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro (TCRJ) Domingos Brazão como mandante do assassinato.
Caso encerrado? Não. Em bate-papo com o jornalista Rafael Soares, autor da obra “Milicianos”, é verdade que Lessa “conversa há meses” com a PF, mas jogar luz agora sobre o caso ainda não o resolveu e, talvez, tenha atrapalhado:
“Domingos Brazão, isso é fato, já foi acusado ao longo do caso Marielle de tentar manipular as investigações. Isso está em meu livro. Mas acho muito ruim para a investigação ter políticos falando sobre o final dela o tempo todo”, alerta Soares.
Não foi o caso do ex-deputado Marcelo Freixo (PT), hoje presidente da Embratur, que tem tomado cuidado para abordar o assunto. A Vírgula entrou em contato com ele. Da Espanha, onde participava da Feira Internacional do Turismo, disse que não falaria sobre o caso agora, exatamente, como se manifestou logo depois no X (antigo Twitter), para deixar apenas a PF o fazer. “É desejo de todos nós saber quem mandou matar Marielle e a motivação do crime”, concluiu na rede social.
O livro de Rafael Soares é impactante, além do caso específico, ao iluminar como esse tipo de crime obscuro tem a assinatura do estado do Rio de Janeiro. O jornalista narra com detalhes a relação brutalidade e corrupção formada dentro das polícias com consequências muito menos românticas do que os filmes nos apresentam. O livro de Soares, aliás, não tem romantismo: é o retrato real e assustador de como política, polícia e crime organizado se misturam. Ronnie Lessa, o “Escritório do Crime”, Adriano da Nóbrega, a relação deste com a família Bolsonaro. Está tudo lá na obra. E Rafael, em entrevista exclusiva para o portal, traz mais detalhes ao leitor.
A Vírgula: A formação como miliciano do Ronnie Lessa exemplifica bem a polícia do Rio. Em seu livro você diz que ele entrou para a polícia, pediu para ser do BOPE, pois gostou do modus operandi dos Caveiras, aderiu à Le Coccq, um grupo de extermínio. Fez parte de um grupo famoso , o PATAMO 500, que usava da brutalidade e da repressão de forma indiscriminada. Foi premiado, chegando à Polícia Civil, mesmo com um passado tão obscuro de ações. Essa é uma trajetória clássica do crime no Rio de Janeiro? O que ela representa?
Rafael Soares: A trajetória do Lessa é mais simbólica do que qualquer outra coisa. Eu, quando comecei a trabalhar esse livro, a ideia de escrever sobre esse universo, sobre essa relação entre polícia e crime, como essa relação é de certa maneira mediada pelo Estado, por política de segurança, se deu a partir da trajetória do Lessa. Em 2020 eu estava trabalhando numa reportagem sobre a carreira do Lessa na PM para a revista Época. Eu trabalho em O Globo há mais de dez anos, e as duas redações funcionavam juntas. Me chamou a atenção o fato de que, até o dia em que foi preso em 2019, por causa da sua participação no assassinato da vereadora Marielle Franco, o Lessa era considerado o “herói da PM”. Todos os elogiavam : “Um dos melhores policiais com quem trabalhei”, “um cara que em operações em favela não tem igual”, “não se faz mais um Lessa”. Enfim, era esse tipo de coisa que eu ouvia. A minha curiosidade foi tentar entender como o “robocop” vira um matador de aluguel. Daí eu comecei a tentar trazer à tona esses rastros documentais que o Lessa deixou ao longo de sua trajetória na PM. Foi aí que eu descobri a história da PATAMO 500, que ele trabalhou na mesma patrulha do Tenente-Coronel Cláudio (Luiz Silva de Oliveira), que hoje está preso acusado do assassinato da Juíza Patrícia Aciolli. Enfim, os dois responsáveis, de certa maneira, pelos crimes de maior repercussão da história recente do Rio trabalharam juntos na mesma patrulha. E cheguei nessa questão, que germinou na minha cabeça para escrever o livro. A trajetória do Lessa é marcada por uma ascensão meteórica dentro da Polícia Militar. Se você pegar a ficha dele na PM, constatará que é imaculada. Ali só tem elogio, promoção por bravura, bonificação financeira e tal. Mas quando eu coloquei a lupa nas ocorrências que geraram esses elogios, essas promoções e bonificações financeiras, constatei que todas possuem indícios claros de violações de direitos humanos, seja indício de execução sumária de traficantes, de tortura ou de desvio de armas.
Inclusive sobre essa questão, você fala em seu livro que, após a redemocratização, a Secretaria de Segurança Pública foi responsável por todas as polícias. Você acha que isso colaborou, para o bem ou para o mal, para a aproximação entre a polícia e a política. Existe essa relação?
A Secretaria de Segurança entra no jogo como um “controle civil das polícias”, em tese. A partir do momento que passa a existir a figura do Secretário de Segurança, que hoje voltamos a ter no Rio, e que temos em todos os estados brasileiros, esse passou, em tese, a exercer o papel de mediador entre as forças de segurança e o governo civil. Você tem a chefia das polícias. Isso até era uma inovação interessante na época. Só que o que ocorreu no Rio, na prática, especialmente naquele período pós-redemocratização, nos primeiros dez anos, é que essa área foi tomada por militares. Diversos generais do Exército se sucederam nesse posto. Então, o que era para ser um cargo de mediação civil, um cargo de caráter político na sua essência, virou um cargo militar.
Você falou do Rio de Janeiro, mas aqui no Espírito Santo também tivemos a Le Coccq. Conseguiu observar em outros estados esses grupos de extermínio, e eles tinham alguma relação com o Rio?
Isso é interessante. Eu, entre novembro e dezembro do ano passado, fiz reportagem para O Globo sobre milícias policiais militares na Bahia. Depois do lançamento do meu livro, estava muito atento ao cenário da Bahia, por causa da crise de segurança pública lá. Me contaram sobre essa história do crescimento das milícias e dos grupos de extermínio principalmente porque o número de policiais réus em operações violentas havia aumentado. Poxa, eu pensei, esse é o gancho que eu precisava, e decidi mergulhar nesse universo. Publiquei uma reportagem sobre isso em janeiro deste ano, há poucas semanas. Só que eu comecei a conversar com o pessoal lá da Bahia sobre essa questão, querendo entendê-la melhor. A gente sempre teve no Rio a ação desses grupos de extermínio, desde os anos 1960 e 1970. Só que a milícia é uma sofisticação desse modelo. O que aconteceu no Rio de Janeiro foram múltiplos fatores, um deles a melhor organização e a sofisticação de modelos nos quais policiais e ex-militares que trabalharam na ditadura aprenderam com a contravenção, o jogo do bicho e a “máfia” dos caça-níqueis. A principal diferença do Rio para os outros estados é que no período em que as milícias começam a surgir, entre o final da década de 1980 e início da década de 1990, observamos a sofisticação de um modelo de organização criminosa formada por policiais. E ali, naquele momento, já existia esse tipo de organização, que eram as relacionadas à contravenção e o jogo do bicho, que tinham, também, a questão do controle do território como mote. Isso de certa maneira foi incorporado pelas milícias. Essa organização criminosa se sofisticou e, a partir dos anos 1990, e principalmente depois da virada dos anos 2000, isso acaba resultando em um aumento exponencial das atividades exploradas por esses grupos.
Você fala, no início do seu livro, que o Ronnie Lessa foi descoberto pelos traços que deixou na internet. Ele andou procurando por você também. Qual foi o seu sentimento?
Isso foi a fagulha que me levou a tentar entender melhor quem era ele. Depois que eu soube disso, produzi muito conteúdo para podcast, sobre pistoleiros e sobre o mercado da pistolagem no Rio. Por conta disso, depois escrevi o livro, também motivado pela busca em saber quem era esse cara. É como eu conto no início do livro, quando eu soube da notícia, que poderia ter sido pior, pois poderia ter descoberto lendo o inquérito, o que acabei fazendo depois. Os investigadores do caso Marielle me chamaram e me contaram e tentaram me tranquilizar nessa primeira abordagem. O que eu conhecia dele era um residual de lenda, dos rumores de quem era o Lessa. No dia que soube que ele estava me “procurando” fiquei morrendo de medo. Eu não sabia exatamente o que fazer pois, ao mesmo tempo em que parte do caso Marielle estava sendo elucidado, estava vindo a público, eu tinha que trabalhar nisso: as milícias, pois faz parte da minha rotina. Ao mesmo tempo em que trabalhava, eu tinha que digerir aquela informação sobre o Lessa me procurar. Mas eu acabei percebendo que o interesse do Lessa por mim ocorreu por causa de matérias que eu estava fazendo na época, naquele fim de semana em que ele me acessou, que ele tentou buscar por mim. Eram matérias que abordavam a letalidade do Bope, sobre o aumento de letalidade de operações policiais do batalhão. O Lessa leu essas matérias e passou a me procurar. De certa maneira isso me tranquilizou. Eu estava fazendo reportagens interessantes que provocaram nele o desejo em saber quem eu era. Minhas matérias não afetavam diretamente interesses dele.
"Me chamou a atenção o fato de que, até o dia em que foi preso em 2019, por causa da sua participação no assassinato da Vereadora Marielle Franco, o Lessa era considerado o herói da PM”.
Rafael Soarez Tweet
Vamos para o assunto do momento, Domingos Brazão, um personagem que você já cita em seu livro. Você afirma que houve uma delação falsa do Ferreirinha sobre o Curicica, que foi intermediada pelo ex-Deputado Estadual e Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro – Domingos Brazão. Essa delação do Ronnie Lessa está certa? A possibilidade de ser o Conselheiro o mandante da morte da vereadora Marielle Franco realmente procede?
Sobre o caso Marielle, até mesmo em respeito à memória e à família dela, é preciso que se ressalte que desde o início das investigações sobre o assassinato houve muitos percalços, problemas mesmo. Para além das mudanças de titularidade de delegados e promotores que chefiaram as investigações, que se revestiram de grande interesse público e muitos holofotes, é preciso ressaltar que a apuração do caso Marielle foi marcada desde o início por muitos percalços, apesar de toda a repercussão. Cinco anos depois, a elucidação do crime se torna hoje muito mais difícil, pois há questões básicas às quais os investigadores não terão mais acesso. Por exemplo, solicitar a quebra de sigilo de novos números de aparelho celular que possam vir a ser encontrados. Depois de cinco anos do crime, isso não pode mais ser feito, por razões materiais mesmo. Para falar sobre o caso Marielle, eu tento ser muito comedido. O Domingos Brazão, isso é fato, já foi acusado ao longo do caso Marielle de tentar manipular as investigações. Isso está em meu livro. As investigações sofreram muitas interferências externas. Na sua primeira fase, essas interferências guiaram as investigações. Só que ocorreu uma reviravolta, com a saída de um Promotor de Justiça e a sua substituição por novas promotoras. Quando o GAECO entra na história, a primeira versão é descartada, e se passa a tentar entender, de fato, quem são os grupos de pistoleiros armados que poderiam ter cometido o homicídio. Isso abriu um buraco no submundo do Rio de Janeiro. Entretanto, com relação ao mandante do assassinato, as investigações pouco andaram, até que a Polícia Federal assumiu o caso. De fato, o Lessa vem conversando com a Polícia Federal há meses. Não consigo dizer a que ponto isso avançou, mas, por outro lado, acho que é muito ruim para a investigação você ter políticos falando sobre o final dela o tempo todo.
Você poderia falar da participação da Polícia Federal no inquérito, chefiando as investigações? Você dedica um capítulo inteiro do seu livro para elucidar o papel da Polícia Civil do Rio de Janeiro e das coisas que ocorreram sob a alçada dela. Quais as diferenças do caso Marielle quando este passou para a esfera da Polícia Federal?
A entrada da Polícia Federal, agora no governo Lula, muda o rumo das investigações. E há um bastidor da razão disso. Os policiais federais que trabalharam no caso Marielle, e que até hoje fazem parte da força tarefa de investigação, têm profundo conhecimento sobre esse submundo do crime do Rio. E mais, têm conhecimento da participação de policiais nesse submundo, pois há dez anos já trabalham com isso. Esse grupo de policiais já trabalhou junto na subsecretaria de inteligência na época do secretário José Mariano Beltrame, em 2014-2016. Era um órgão de investigação da própria polícia, externo às forças policiais do Rio de Janeiro. Eles acumularam conhecimento para, hoje, conseguirem circular bem por esse universo. Por outro lado, tem o problema da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Já está provado, pelo histórico do caso Marielle, que é uma organização que sem a capacidade, por questões técnicas e de corrupção, para estar à frente de um caso como esse.
Vamos tratar do assunto Adriano da Nóbrega. Você destaca as relações entre ele e a família Bolsonaro, com o emprego de pessoas em cargos públicos, as relações com Queiróz. Há diversas evidências de ligação entre ambas. Bolsonaro sempre defendeu policiais acusados de homicídio, e, até mesmo, concedeu condecorações a eles, inclusive quando presos. Agora, quando vem a público o caso da participação do Conselheiro Domingos Brazão, após um silêncio de muitos anos, observamos uma gritaria da ligação de Brazão com PT. Queria que você falasse um pouco dessa situação toda.
O Adriano é o motor da segunda metade do meu livro. Ele e o Lessa são por mim usados como os fios condutores para tentar entender. Ambos têm carreiras parecidas, mas com diferenças fundamentais e interessantes. O Lessa é aquele policial que até a aposentadoria foi um modelo para a corporação, nunca sofrendo nenhuma acusação, nem foi expulso da Polícia. Já o capitão Adriano foi expulso da Polícia Militar. Antes, foi expulso do Bope. Foi um cara que teve graves percalços na carreira policial. Os dois trabalharam no Bope. Só que o Adriano é um Caveira, um policial cursado. O Lessa foi voluntário, jamais fez o curso. Os dois têm trajetória que, ao mesmo tempo em que se toca em alguns pontos, ela se distancia em outros. Mas, no que é o cerne do livro, são trajetórias muito significativas. Expressam a questão de como policiais que se corrompem no serviço acabam matando, tanto no crime como fora dele. O Adriano ter vindo à tona foi outro legado importante do caso Marielle. Ele era uma figura que, apesar de seu nome rondar os subúrbios do Rio, de ser bastante conhecido por moradores de bairros do Rio como Jacarepaguá, Campinho, Praça Seca, Barra da Tijuca, quase nunca chegava aos inquéritos policiais. Isso apesar de ser apontado como autor de mais de uma dezena de crimes nos últimos dez, quinze anos. Ele era, de fato, um intocável. Esse era um problema que a Polícia do Rio não conseguiu, ou não quis, resolver ao longo de um certo período. Precisou acontecer um furacão, como foi de fato o caso Marielle, para que o nome do Adriano viesse à tona. O Adriano é um símbolo grande da impunidade, de como a polícia do Rio falha em combater o crime
E as relações dele com Bolsonaro e a extrema-direita se aproveitando de todo o caso?
Essa é uma questão interessante. A família Bolsonaro nunca conseguiu responder de forma convincente. Quando a mãe e a ex-mulher do Adriano estavam lotadas no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro, ele já era um temido bicheiro da Zona Oeste do Rio. Já havia sido expulso da Polícia Militar por ligação com o jogo do bicho, o que era público. O Bolsonaro nunca mencionou as acusações públicas que pesavam sobre o Adriano, muito menos sobre a expulsão dele. Não tem como você justificar a proximidade com o Adriano afirmando que o conheceu como policial guerreiro, pois eram públicos os crimes. Bastava jogar no Google. Essas alianças no Rio, essa forma de mistura entre política, crime organizado e forças de segurança é encarada, muito, sob esse véu do policial combatente. Se é um policial combatente, isso justifica seu comportamento. Esse é o discurso do Bolsonaro sobre o Adriano. O que há por detrás é a participação do crime organizado na política. O Adriano tinha gente da família dele no gabinete do Flávio, enquanto era um cara temido em vários bairros do Rio de Janeiro, cometendo homicídios, fazendo atentados, sendo o protagonista da maior guerra da época, da contravenção no Rio. Paralelamente a isso, tinha seus braços na Assembleia Legislativa. Não temos mais detalhes de informações sobre isso. O que se sabe é que havia uma proximidade do Adriano com o Flávio Bolsonaro – ele ensinou o Flávio a atirar.
"Essas alianças no Rio... essa forma de mistura entre política, crime organizado e forças de segurança é encarada, muito, sob esse véu do policial combatente. Se é um policial combatente, isso justifica seu comportamento. Esse é o discurso do Bolsonaro sobre o Adriano".
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