Não há espaço para ingenuidade na política – ao contrário da desinteligência que grassa de forma assustadora –, muito menos em tempos de uso massivo das redes sociais para desestabilização de governos, instituições, personalidades públicas e pessoas, visando ao avanço do movimento. Essa é a denominação dada pelo estadunidense Steve Bannon, um dos mentores da internacional neofascista, a grande articulação transnacional de partidos e grupos de extrema-direita, fundamentalistas religiosos, supremacistas e ultranacionalistas, que decorre de uma agenda política e social conservadora, reacionária e autocrática, voltada para a conquista, o exercício e a manutenção do poder nos diversos países ocidentais.
Nesse contexto, podemos entender a série de reportagens publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo, ao longo desta semana, abordando o que ela denominou de ações “fora do rito” praticadas pelo Ministro Alexandre de Moraes, então presidente do Superior Tribunal Eleitoral (TSE), e seus assessores diretos, em decorrência das investigações de toda a arquitetura e engenharia do golpe de Estado fracassado de 8 de janeiro de 2023.
O Ministro Moraes divide com o Presidente Lula (PT) o papel de seres mais execrados pelas hordas de extrema-direita tanto na esfera pública quanto na efervescência do seu ecossistema, nas diversas redes sociais, sempre com um discurso de ódio voltado contra inimigos bem definidos a serem combatidos, presos e, no limite, eliminados fisicamente – é público que o assassinato de Moraes consta da minuta do golpe, que circulou amplamente antes de sua fracassada perpetração.
Para acrescentar mais um elemento perturbador nesse contexto, é importante lembrar que Moraes foi alvo de ataques pesados, há alguns meses, que tiveram como origem o obscuro empresário Elon Musk, proprietário de grandes empresas de tecnologia, como o X e a Starlink – ambas com forte presença no mercado brasileiro. Musk, uma pessoa ligada ao movimento, não poupou adjetivos depreciativos em relação a Moraes, com a arrogância própria de um ser que se considera, pelos mecanismos que possui e aciona livremente, supranacional, alguém acima do bem e do mal, detentor de uma pretensa autoridade suprema para interferir nos assuntos internos das diversas nações e dos bilhões de seres humanos, desconhecendo os tratados internacionais, os direitos humanos e as normas constitucionais e infraconstitucionais dos Estados-Nações.
Musk incorpora, em sua personalidade egótica, todo o ideal de uma geração nascida, criada e encantada pelas maravilhas sedutoras e fatais que a tecnologia da informação possui, a de pretensos superpoderes ilimitados e transnacionais. Ultracentrado em si mesmo e em suas conveniências individuais, para ele, o Estado deve se recolher a um mero papel de facilitador local de seus interesses econômicos, anulando qualquer tipo de regulação ou restrição às suas atividades. De acordo com Musk, os demais seres humanos são meros consumidores daquilo que considera fruto de sua genialidade, e a devem receber como dádiva concedida por um ser superior. Musk e sua personalidade doentia são, de fato, a projeção de desejo existencial do neoliberalismo e de sua legião de crentes, bem como do movimento e de sua organização autocrática da vida política e social. Mas é esse protótipo de indivíduo que guia parte considerável dos sonhos de muitas pessoas, o que nos ajuda a entender a patologia coletiva que toma o planeta nos tempos presentes.
Ao protagonizar o embate com Moraes, Musk sinalizou sobre sua importância como um entrave para toda a geopolítica do movimento e dos interesses das empresas de tecnologia. Lula e Moraes representam, no espaço público brasileiro, respectivamente, o poder popular legitimado pelo voto e o exercício feito por agentes do Estado, na esfera judiciária, para manter viva a ordem jurídica e constitucional na qual se alicerçam as instituições democráticas. Segundo o movimento e homens como Musk, Lula e Moraes são dois seres “matáveis”, para nos valermos da conceituação do filósofo italiano Giorgio Agamben. Ambos representam empecilhos à implantação dos projetos do movimento e do capital libertário, encarnado em Musk. Então, precisam ser removidos, independentemente das maneiras de fazer isso. Dentre elas, a detratação e a suspeição recorrente sobre seus atos, como forma de fragilizá-los e permitir a construção de uma narrativa que, ao mesmo tempo, desqualifique e criminalize.
No caso de Moraes, a Folha aceitou se tornar o veículo de mídia encarregado de lançar um conjunto de dúvidas que, no limite, possam criar condições para a nulidade dos processos em curso, a revisão daqueles já conclusos e a pavimentação de uma anistia ao conjunto de pessoas envolvidas em toda a trama do 8 de janeiro, especialmente Jair Bolsonaro, hoje inelegível por condenação do TSE. Tudo isso, a partir de divulgação de fatos interpretados propositalmente de modo enviesado, criando dúvidas sobre a legalidade deles. Mais que o fato histórico, prevalece a narrativa a seu respeito, o alcance que esta possui junto ao imaginário social e o conjunto de símbolos que aciona na busca de sua autojustificação, quase distópica.
Na história da República brasileira, as mídias sempre tiveram um papel determinante na conquista de corações e mentes legitimadores dos atos de força que, ferindo a Constituição, subverteram o Estado Democrático: os diversos golpes de Estado. Os dois últimos são exemplares desse papel tanto o de 1964, um golpe militar, quanto o de 2016, um golpe parlamentar-judiciário.
Além disso, em 2018, frente ao perigo anunciado pela agressividade e clarividência autocrática do discurso do então candidato Jair Bolsonaro, as mídias corporativas brasileiras mantiveram uma posição, no mínimo, dissimulada e cúmplice diante dos acontecimentos históricos que se prenunciavam. Tendo sido um elemento fundamental na desestabilização política a partir de 2013, assistiram, juntamente com a classe política tradicional, a emergência da extrema-direita e de seus aliados siameses, que, juntos, passaram a deter a hegemonia do campo de oposição às forças democráticas e progressistas, valendo-se das tecnologias de informação e de suas redes sociais, bem como das estratégias e táticas de guerra psicológica, ou híbrida, desde há décadas manualizadas pelas grandes potências do norte global, em razão de diversos embates travados ao longo da história.
As mídias, pois, não discutiram Bolsonaro de forma honesta, como um expoente da extrema-direita, mas como um candidato outsider, desprezando propositalmente as evidências em contrário, fartamente conhecidas até pelo reino mineral e pelos seres anencéfalos. No entanto, passaram a ser, já em 2019, e de uma forma crescente nos anos posteriores do governo anterior, alvo de um enfrentamento mordaz daquele personagem sobre o qual silenciaram, o que acabou levando alguns grupos de mídia para a oposição ao governo anterior, apesar de sua concordância com a política econômica executada.
Ressalte-se que essas mídias ainda estavam inebriadas com o moralismo de bordel ressurgido com as ações da “operação lava-jato”, que elas próprias elevaram à condição de uma cruzada moral redentora da República e dos seus valores. De forma cínica, mídias, grandes empresas e boa parte da sociedade brasileira projetaram no “outro” – uma categoria altamente genérica, definida conforme o interesse do grupo hegemônico, o personagem do inimigo. O extremismo de direita não era inimigo da Democracia, o inimigo era o campo progressista e democrático.
O “inimigo”, cabe dizer, é uma construção essencial para a mobilização das emoções das massas quando o objetivo é criar um clima de sublevação cívica que justifique uma alteração de poder, bem ao estilo das chamadas “revoluções coloridas” – essas financiadas e municiadas diretamente pelos serviços de inteligência das potências do norte global, especialmente a CIA, dos EUA, e o MI 6, do Reino Unido.
O Brasil, bem como toda a América Latina, está na alça de mira da geopolítica dos Estados Unidos nesta quadra histórica, porque, com seu poder econômico, tecnológico e militar sendo contestado pelo crescimento da China, quebrando a unipolaridade erigida a partir do fim da União Soviética, em 1991, os Estados Unidos voltam suas atenções para a garantia de seu antigo “quintal”, o restante do continente americano. Qualquer tentativa de busca de construções políticas autônomas pelos países da América Latina, que passem por fora do controle dos interesses do governo dos Estados Unidos, tende a ser cada vez mais combatida e sufocada, pois está em jogo a existência do império em uma era de crise sistêmica. Desde 2022, nossa democracia tem, no atual governo dos Estados Unidos um fiador, receoso de uma guinada do Brasil em direção ao seu grande inimigo interno, o ex-presidente e candidato a presidente nas eleições de novembro, Donald Trump, um ícone do movimento.
O neocolonialismo, com as vestes de uma forte influência sobre o Poder Judiciário e o Ministério Público, deve levar a novos e seletivos surtos de lawfare por todo o continente, atingindo os países com governos que se propõem a adotar políticas distintas daquelas ditadas por Washington e por seu aparato de agências. Não há mais necessidade de se apelar aos militares para que golpes brutais sejam perpetrados, como em 1964, mas, sim, há espaço para se manter o imaginário social sempre contaminado com insumos desestabilizadores e amedrontadores, capazes de gerar revoltas e de criar uma ambiência competente, como em 2016, para corroer as condições institucionais de existência de um governo democraticamente eleito. É a nova geopolítica e os meios pelos quais ela se movimenta em todo o cenário.
Nesse sentido, sistemas e instituições democráticas, como os do Brasil, se apresentam com uma enorme fragilidade frente aos desafios brutais dos novos tempos, o que torna nosso futuro algo bastante incerto, ainda mais com o tensionamento constante da cena interna, fruto de uma polarização calcificada e radicalizada pela extrema-direita. Atacar as instituições e seus agentes representa, mais que nunca, uma erosão de sua capacidade de ação e de sua representatividade efetiva.
A pantomima que se tenta criar em torno do Ministro Moraes teve, ao menos até agora, um efeito nulo sob o ponto de vista jurídico. Não há invalidade no fato de um Ministro do STF solicitar ao gabinete deste mesmo Ministro, ocupante do cargo de presidente do TSE, informações sobre a participação de determinadas pessoas na trama golpista que foi encenada em público, nas ruas e nas redes sociais, com seus protagonistas despreocupados em manter-se no anonimato.
As pretensas acusações contra Moraes e sua equipe se baseiam nos dados recolhidos pela Polícia Civil do Estado de São Paulo, no aparelho celular de um assessor do Ministro na presidência do TSE, preso por acusações de prática de violência doméstica. Esses dados foram repassados ao jornal, que os divulgou de forma alarmista, escandalosa, como se tratasse de uma grande conspiração judiciária contra a cidadania, e não o curso do devido processo legal na sua fase de investigação de crimes cometidos contra a Democracia e suas instituições. Não por acaso, a maioria absoluta dos membros do STF e da advocacia, inclusive os que possuem restrições a Moraes, foi unânime em apontar que não há irregularidade alguma nos fatos até o momento divulgados.
Bem, se não há nulidade nos fatos, o que fez a Folha arquitetar e operar a elaboração e publicação desse conjunto de matérias? Sabemos que, de forma preocupante, as pessoas, cada vez mais, concentram o seu campo cognitivo nas manchetes apresentadas aos seus olhos, nas redes sociais e nos materiais impressos. Poucas têm a curiosidade, e não há cinismo nessa afirmativa, de esmiuçar um texto, apossar-se dele, ficando o indivíduo, por vontade própria, à mercê daquilo que lhe é apresentado como um signo que desperte seus sentimentos.
Essa a razão para que títulos de artigos ou matérias sejam, hoje bem mais que nos tempos pretéritos, trabalhados de forma tão impactante, pois precisam se recobrir do necessário apelo que atraia o olhar e acione todo um sistema cognitivo, já ávido pela informação que corrobora seu sistema de crenças, o qual precede a absorção da notícia. Não se informa, se corrobora, valendo-se sempre de textos rasos, de adjetivos fartos e de conclusões mortais, como se proferidas por um juiz advindo das páginas do Antigo Testamento. A partir daí, o sentimento de ódio, de desprezo e de vingança ganha impulso e movimenta toda uma rede de solidariedade que se move na rapidez da luz.
O Ministro Moraes, um homem de passado conservador e autoritário, demonstrou, na condição de presidente do TSE, entre 2022 e 2024, conhecer e articular de forma competente os mecanismos necessários ao controle dos grupos, e dos meios que operam, que sonham com a subversão da ordem constitucional e o cancelamento do Estado Democrático.
Desde sua posse, em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro e seu círculo mais próximo, composto por militares e civis, planejou e executou uma série infindável de ações visando à desconstrução do aparato de Estado e à concretização dos objetivos do movimento, organização à qual está ligado, tendo seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) como o principal elo. Isso sem falar na sua conhecida relação com as milícias, os grupos paramilitares de natureza criminosa, com atuação em todo o território nacional.
Maquiavel afirma que o “o Príncipe deve ser amado e odiado”. Lula é o “príncipe amado”, que sofre com a fadiga da história, pois transita pela política, interagindo diretamente com as emoções populares brasileiras, desde a década de 1970. Já Moraes, integrante do Poder Judiciário, é o “príncipe temido”, pois encarna em si o poder do Estado, aquele delegado pela Constituição e pelas leis, cabendo a ele a garantia do funcionamento das instituições no contexto de uma Democracia.
As ações de Moraes contra a extrema-direita o transformaram em um inimigo mortal desse campo político, desde que assumiu a relatoria no STF do inquérito das fake news, em 2019, posteriormente, em 2021, transformado em inquérito dos atos antidemocráticos, em razão da escalada dos confrontos promovidos pela extrema-direita, tendo como alvo as instituições e a Democracia. Mais que Moraes, é o poder do Estado, no uso de suas atribuições de autodefesa, de imposição de normas que mantenham a nação na devida normalidade, o que tanto incomoda o movimento e seus membros.
Atacar Moraes, da mesma forma que se faz com Lula, valendo-se de todos os meios, inclusive dos mais fantasiosos e criminosos, passou a ser a tônica central da extrema-direita, pois ambos representam obstáculos, político e jurídico, ao seu projeto de anomia, de destruição, para imposição de uma ordem autocrática. As matérias da Folha, não por acaso, foram imediatamente repercutidas e aplaudidas por personagens como Elon Musk e os grupos de extrema-direita nos Estados Unidos e, principalmente, no Brasil.
Aqui, rapidamente, trataram de aumentar o tom dos ataques ao Ministro, chegando a protocolar, no Senado, o seu pedido de impeachment, além de convocar manifestações públicas, valendo-se do 7 de setembro como palco para essa pantomima golpista. Talvez esse tenha sido, ao menos até o momento, o efeito prático das matérias publicadas pela Folha, o de funcionarem como “apito de cachorro”, acionando toda a engrenagem extremista que se mantinha acuada desde a derrota sofrida com a suspensão do processo de tramitação legislativa do Projeto de Lei 1904/2024, o “PL do estuprador”, em junho deste ano. As hordas extremistas de direita saíram à luz para vociferar todo o seu ódio em relação ao Ministro Moraes e ao que representa, bem como reiterar toda a catilinária golpista e sua simbologia junto ao imaginário social.
Os extremistas de direita se vitimizam diante da sociedade, tentando estabelecer uma nova disfunção cognitiva, que remete a um fantasioso paralelo entre as ações investigativas, comandadas por Moraes em defesa da Democracia, e os crimes cometidos por um condomínio de desembargadores federais, juízes, promotores e advogados, naquilo que ficou conhecido como “operação lava-jato”.
Desejam retomar o protagonismo político e dar curso ao projeto golpista, jamais abandonado, contando com o apoio do grande capital nacional e transnacional, afinado com as diretrizes do movimento. Não obtiveram êxito até o momento, por completa ausência de materialidade naquilo que foi seletivamente revelado pelo jornal paulistano de forma alarmista. Tentaram criar uma crise institucional, mas também não obtiveram êxito.
No entanto, ganharam, e isso é um aspecto importante, ao fornecer valiosos insumos para toda a gramática e o conjunto de estratégias dos extremistas. Assim, haverá base para a produção e difusão de informações criminosamente falsas, as fake news, e para a construção imaginária de um Estado autoritário judicial no Brasil, peça central de sua narrativa em busca do apoio internacional. A Folha, por decisão editorial, se prestou ao papel de integrar o elenco de uma conspiração. Isso nos alerta para a dimensão e o fôlego do conluio.
O golpe de 8 de janeiro de 2023 foi uma das várias tentativas derrotadas de subversão, patrocinadas pelo grupo político que governou o Brasil entre 2019 e 2022. O espectro do golpismo ronda o Brasil, pois ele é parte integrante de toda a estrutura histórica e fundante de opressão política, econômica e social, refratária a quaisquer mudanças. Sempre poderá se materializar, no todo ou em parte, através da violência brutal contra a cidadania, praticada tanto por agentes públicos quanto por elementos de organizações paraestatais e por pessoas comuns, para as quais o inimigo não só deve ser combatido e desprezado, mas eliminado, deletado, cancelado. É a democracia brasileira, e não o Ministro Alexandre de Moraes, que foi alvo de ataque pelo jornal paulistano, como parte de toda uma estratégia global do movimento.