Por Lígia Kunzendorff Mafra e José Luis Bolzan de Morais
A última semana terminou e esta começou marcada pelo embate da “musklandia” com o Brasil, em particular, no caso, com as determinações emanadas pelo STF, especificamente, prolatadas pelo Min. Alexandre de Moraes.
De lá para cá tem se assistido o “opinódromo” e o “achismo” tem ocupado todos os espaços de discussão. Do boteco da esquina aos grandes meios de comunicação – analógicos e digitais – todos têm alguma consideração a fazer.
O resumo da ópera fica pela dualidade entre favoráveis e contrários, o que lá nos pampas gaúchos poderíamos dizer “grenalização” ou, no sudeste do País, por uma espécie de “FlaFlu” político-jurídico.
No meio de tudo isso quem perde: a democracia, o Estado de Direito e todos os projetos minimamente civilizatórios que têm sido tentativamente experimentados pelas sociedades liberais, dentro de seus estreitos limites.
Muitos são os aspectos aqui envolvidos. Desde uma crise da estatalidade moderna, pequena demais para os “big” poderes das “Big Techs” – com a redundância intencional -, até os problemas da teoria liberal-democrática e suas dificuldades para se manter respirando – que não só por aparelhos – e mantendo seus pressupostos formais e materiais em mínimo funcionamento, apesar de sua insuficiência histórica quando pensamos historicamente – mas este é um debate que não cabe neste pequeno espaço.
A questão ganhou tanta proporção que até mesmo um ex-secretário do trabalho dos EUA – Robert Reich – reconhece, em artigo publicado no The Guardian que “Elon Musk está fora de controle…” e lista seis maneiras de controlar sus práticas.
Por aqui, a decisão de suspender o funcionamento do X Brasil e a subsequente suspensão parcial dessa ordem no dia seguinte revelam a complexidade e as controvérsias envolvendo o papel das plataformas digitais no cenário político e jurídico brasileiro.
Desde as eleições de 2018 tem-se presente o papel das “Big Techs” no processo eleitoral, não restrito apenas aos usos destes meios por parte de atores políticos, como também no processo econômico aí envolvido.
Durante as eleições de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) desempenhou um papel crucial para garantir a integridade daquele processo eleitoral. Sob a presidência do Ministro Alexandre de Moraes, o TSE adotou uma postura ativa, impondo limites e monitorando as atividades nas redes sociais para combater a disseminação de desinformação. Essa atuação foi essencial para que as eleições de 2022 transcorressem de maneira relativamente tranquila, protegendo o processo democrático das ameaças representadas pelas milícias digitais.
Da mesma forma, na esteira do “golpe tentado” de janeiro de 2023, o STF tem sido um ambiente privilegiado no enfrentamento das repercussões patrocinadas pelas ditas redes (anti)sociais na propagação de discursos de ódio, antidemocráticos, neofascistas etc.
Tudo isso tem trazido à tona questões que precisam ser enfrentadas. A defesa da democracia (liberal) constitucional exige cuidados constantes, bem como posturas que mantenham sob controle arroubos produzidos por esta cultura polarizada, muitas vezes resultado do agir estratégico presente nos modelos algoritmizados de comunicação.
Por isso, no calor do momento, é crucial uma mirada crítica, sempre mediada pelos elementos estruturantes das regras do jogo democrático.
No que concerne à postura ativa e, em muitos momentos, controversa do Ministro, não se limitou ao período eleitoral. Após as eleições, sua atuação continuou a ser marcada por um viés que alguns críticos classificam como “ativista” ou até mesmo autoritário. Esse estilo de liderança se refletiu especialmente no “inquérito das fake news”, onde medidas controversas – para alguns “heterodoxas” – do ponto de vista jurídico foram tomadas contra indivíduos e entidades que, de acordo com o STF, disseminaram desinformação e incitaram crimes contra a ordem pública e as instituições democráticas.
No contexto dessa abordagem rigorosa, a batalha entre o X e a justiça brasileira ganha destaque. Embora a plataforma tenha cumprido inúmeras decisões judiciais ao redor do mundo, no Brasil, Elon Musk optou por travar uma guerra aberta contra as autoridades, o que lança luz sobre o fato de que há interesses subjacentes do empresário que não estão plenamente explícitos. Essa resistência às ordens judiciais brasileiras, expressa tanto em ações quanto em declarações públicas, levanta a suspeita – uma certeza, para muitos – de que Musk está usando a liberdade de expressão como escudo para proteger interesses que nada tem a ver com democracia ou à promoção daquela. Ao contrário, tem-se constatado que o empresário parece estar promovendo uma cruzada global com fins político-econômicos estratégicos e bem definidos, pondo em xeque as condições normais de temperatura e pressão que sustentam os Estados (Liberais) de Direito.
Em mais um cenário dessa batalha, a decisão inicial do STF de banir o X da internet brasileira envolveu a imposição de penalidades não apenas à plataforma em si, mas também a outras empresas do grupo econômico, como a Starlink, também controlada por Musk, levantando questionamentos – como muitos o fizeram – a respeito da possibilidade jurídica desse redirecionamento.
A validade dessa abordagem depende do rigor com que os procedimentos são observados, sob pena de nulidade, algo especialmente sensível no conturbado inquérito das fake news.
Outro aspecto problemático é a determinação de utilizar a própria rede social X para promover intimações. A utilização de aplicativos de troca de mensagens para esse fim, embora já aceita em certos contextos, apresenta obstáculos consideráveis em termos de garantia de que as partes sejam efetivamente notificadas. Imaginem só a ideia de intimações via rede social? Imaginem se outros juízes começarem a aceitar essa espécie anacrônica de intimação processual? Especialmente em um processo penal, é uma grande “red flag” (para usar a expressão dos jovens nas redes) quanto ao devido processo legal e à formalidade do rito, princípios que são pilares do sistema jurídico.
Uma terceira questão relevante sobre a decisão recente diz respeito às penalidades para pessoas físicas e jurídicas que tentarem contornar o bloqueio ao X utilizando VPNs. Essa determinação, sem adentrar na possibilidade técnica da mesma, atinge diretamente indivíduos que, a princípio, não têm qualquer vínculo com o processo em julgamento, trazendo à tona uma questão crítica: a extensão do poder punitivo do Estado sobre terceiros que não são parte do processo.
A punição dessas pessoas físicas, com a imposição de multas, escancara que, também nesse ponto, há um desvirtuamento do devido processo legal, trazendo mais uma séria preocupação sobre a proporcionalidade e a legalidade da medida.
Ao atingir indivíduos comuns, que apenas buscam acessar uma plataforma banida por meio de VPNs, a decisão amplia o alcance da penalidade para além dos limites tradicionais, interferindo diretamente no direito individual ao uso de tecnologias que, em si, não são ilegais.
Essa ampliação do poder punitivo sobre terceiros não envolvidos no processo judicial em questão traz à tona o debate sobre o devido processo legal e os limites da jurisdição. A questão central aqui é se é legítimo que o Judiciário penalize pessoas completamente estranhas ao litígio, apenas por tentarem driblar uma determinação que, até onde se sabe, foi imposta a entidades e pessoas diretamente relacionadas aos fatos investigados.
O que se extrai de toda a celeuma, ou seja, o “x” da questão é que o Direito não pode se desprender de suas formalidades e ritos – das regras do jogo, como diria N. Bobbio. O conteúdo sem a forma adequada perde sua validade, e no processo penal, os meios são tão importantes quanto os fins almejados.
A flexibilização das regras processuais com base em um senso de “justiça”, ou “pelo bem maior” ou de uma necessidade puramente pragmática, pode abrir precedentes perigosos, permitindo que juízos de valor subjetivos se tornem a norma, o que é altamente perigoso em termos de garantias fundamentais, em contextos futuros onde a visão dominante não seja tão alinhada com os valores democráticos.
Por enquanto pode ser o que julgamos como “autoritarismo do bem”, até não ser mais.
Portanto, a solução para o grave problema da influência das mídias sociais nos processos eleitorais não está no abandono dos princípios jurídicos fundamentais, no afastamento das “regras do jogo”.
A resposta reside em mais democracia, em um fortalecimento do debate no legislativo para a criação de uma regulamentação robusta das redes sociais, que forneça ao Judiciário as ferramentas necessárias para atuar sem recorrer a medidas extraordinárias. Sem isso, o Judiciário continuará a operar em um vácuo normativo, arriscando-se com a utilização de mecanismos duvidosos e incompatíveis com o ideal democrático.
O dilema é definir como proteger a democracia da “musklandia”, mantendo-a em vigor.