Polêmica, a proposta da mudança no Código Civil que altera o regime de herança nem começou a tramitar e já causou confusão. Ainda em anteprojeto, a proposição coloca os pais da pessoa que morre como herdeiros antes dos cônjuges, e isso tem gerado críticas de movimentos feministas. No Congresso, o senador Fabiano Contarato demonstrou-se totalmente contrário à proposta e se manifestou nas redes sociais.
“Imagine a situação em que um casal construiu por anos um patrimônio e a sua companheira não terá direito a herança porque há outros familiares em sua frente na ordem sucessória? Essa alteração consta no anteprojeto que atualiza o Código Civil e começou a tramitar no Senado Federal. O documento traz mudanças nas áreas de família, herança, entre outras. Dentre elas, o texto propõe que os cônjuges deixem de ser herdeiros necessários. Na prática, o viúvo ou a viúva deixa de ter direito à herança legítima – situação que afeta principalmente as mulheres. Lutaremos contra esse retrocesso!”, manifestou-se Contarato.
A Vírgula conversou com Juristas para entender melhor as questões colocadas.
No código que está vigente, os primeiros herdeiros necessários são os descendentes e a viúva, podendo ser cônjuge ou companheiro por vias de união estável. Neste texto, vamos nos referir sempre como cônjuge, mas considerar os dois cenários. O importante é que se entenda que o principal interessado no assunto é quem se casou ou se uniu. Porque são esses os personagens que estão encarando a principal mudança da proposta: no momento dolorido em que a companhia de uma vida morre, a herança deixa de ser garantida como necessária.
O texto da proposta em análise no Senado foi elaborado por uma comissão de juristas formada por ato do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, e presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão.
O documento traz mudanças nas áreas de família, herança, doações de órgãos, direitos dos animais, além de incluir o direito digital, entre outras. Pacheco apresentará projeto de lei a partir desse documento, que passará a tramitar na Casa e ser discutido pelos senadores.
O trabalho do grupo de 38 juristas começou em agosto de 2023. Foram analisadas 280 sugestões da sociedade e realizadas várias audiências públicas, com o apoio da Consultoria Legislativa do Senado, para chegar a um texto com mais de mil artigos.
O advogado familiarista José Eduardo Coelho Dias explica que o Código Civil que está em vigência realmente precisa de uma atualização, porque embora tenha entrado em vigência em 2002 foi concebido na década de 1970. “A estrutura do Código é um pensamento relacionado à década de 1970 e 1960-1970. Como era a família? Era uma família hierarquizada, vertical. Tinha o chefe da família, que era o marido, então era uma família patriarcal. A mulher tinha pouquíssimos direitos. Não havia igualdade entre os cônjuges. E ainda havia a figura dos filhos concebidos fora do casamento, que eram chamados ilegítimos. E as relações familiares nessa época fora do casamento eram consideradas ilícitas, reprimidas e que não geravam qualquer efeito. Então, quando o código de 2002 foi concebido, ele foi concebido com essa estrutura, com essa cara. Ou seja, nasceu velho quando ele entrou em vigor”, explica.
O advogado salienta que o processo entre a construção e a validação das regras vigentes passou por momentos relevantes, como a Lei do Divórcio e a Constituição de 1988. A própria história, portanto, fez com que a realidade e a lei tivessem disparidades e fosse necessário que o Congresso remendasse o código muitas vezes.
“Criaram regimes de casamento, como por exemplo da comunhão parcial de bens, em que não era totalmente igualitária a divisão. Antes o regime da separação total ou o regime da comunhão universal. Se havia um regime da comunhão universal, com um casamento indissolúvel, não tinha muita necessidade de proteger a mulher. Quando veio o regime da comunhão parcial, criou-se, na cabeça daqueles juristas, a necessidade de proteger a mulher. Então, nesse código de 2002, a mulher passou a ser herdeira dos bens próprios do marido, assim como os filhos. Então ela passou a ser concorrente dos filhos na herança”, rememorou.
A advogada familiarista Cristina Daher concorda que as alterações são uma evolução: “Temos de pensar que a questão do regime é definida no início da relação, quando pelo menos em tese tudo está bem entre os casais. Então, se existe um momento propício para essas definições é por ocasião do casamento”, exemplifica, apontando que cabe aos casais decidirem o regime de divisão de bens.
“Pela redação atual (de 2002) do artigo 1.845 do Código, os herdeiros necessários são os descendentes (filhos e netos), os ascendentes (pais e avós) e os cônjuge. Porém, no caso de comunhão parcial de bens que é o regime geral o cônjuge figura como meeiro sobre os bens adquiridos na constância do casamento. Hoje, mesmo havendo o regime da separação de bens o cônjuge é considerado herdeiro”, discorre. Ou seja, quando houve a escolha de não dividir os bens, caso da separação total, os parceiros herdam.
O que muda no código, segundo os advogados, é a ordem: em caso de não haverem filhos, herdam os pais, em caso de não haverem descendentes nem ascendentes, herda o cônjuge. Antes, os cônjuges estavam ao lado dos descendentes, dividindo por igual os bens herdados.
O senador Fabiano Contarato avisou nas redes sociais que vai defender no Senado que a esposa seja herdeira antes dos ascendentes. Para o senador, esse é o melhor caminho.
O advogado José Eduardo Coelho Dias acredita que a proposta tenha sido feita dessa maneira porque o princípio da família prevê que os pais protejam os filhos e os filhos protejam os pais, e por isso a nova regra faria sentido.