Há 10 anos, escrevi reportagem sobre a relação da política com o crime. Identifiquei que, no Espírito Santo, havia candidatos que pagavam traficantes para terem privilégio de campanha em determinadas áreas. E de outras figuras públicas que subiam morro distribuindo dinheiro vivo. Nenhuma novidade, claro. O que dizer, afinal, da intimidade e cumplicidade de diversos representantes do estado do Rio de Janeiro com a milícia.
Mas é exatamente a naturalidade que fere. E tenho tentado apontar esses conformismos inacreditáveis em meus últimos artigos. Sigamos, pois as contradições políticas em defesa do próprio umbigo seguem a todo vapor no mercado.
No caso Marielle Franco, os irmãos Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio, e Chiquinho Brazão, deputado federal, foram presos, acusados de mandar matar a vereadora e o motorista Anderson Gomes.
Mesmo assim, 129 deputados federais votaram na Câmara a favor da soltura de Chiquinho Brazão, com o argumento despudorado de que não havia motivo para a prisão preventiva do colega; e que eles não estavam votando pela pessoa, mas analisando estritamente o teor da matéria.
Balela. Tudo o que não se importam. A racionalidade não tem sido regra para esses parlamentares que tentaram soltar o deputado. Outra linha de justificativa seria uma forma de protesto do centrão e do bolsonarismo contra o STF (Supremo Tribunal Federal) e Alexandre de Moraes, relator do caso. Injustificável e egoísta. O jornalista Leonardo Sakamoto chegou a classificar o ato como a formação da “bancada da milícia”.
Ainda sobre o assassinato de Marielle, o artífice dos disparos, Ronnie Lessa, foi considerado herói na Polícia Militar por décadas, como escreve o jornalista Rafael Soares, autor da obra “Milicianos”. Pasme:
“A trajetória do Lessa é marcada por uma ascensão meteórica dentro da Polícia Militar. Se você pegar a ficha dele na PM, constatará que é imaculada. Ali só tem elogio, promoção por bravura, bonificação financeira. Mas quando eu coloquei a lupa nas ocorrências que geraram esses elogios, essas promoções e bonificações financeiras, constatei que todas possuem indícios claros de violações de direitos humanos”, afirmou Soares para A Vírgula.
Outro acontecimento que trouxe à tona a relação entre política e crime organizado, mesmo que a princípio de forma indireta, foi a fuga de dois presos do Comando Vermelho da prisão federal de Morroró, no Rio Grande do Norte.
Amplamente, a imprensa abordou os esquemas das facções criminosas. Editorias de política se tornaram de polícia por pelo menos uma semana. E o Estadão, por exemplo, trouxe série de reportagens sobre os crimes obscuros de colarinho branco.
Uma das respostas do Congresso, na esteira dos acontecimentos, foi aprovar o “PL das saidinhas”. Nada mais do que uma aposta no chamado “populismo penal”, vertente punitivista e especialidade da extrema-direita – apesar de que, neste caso, a medida teve apoio de todos os lados. A ideia é capitalizar, não importa a efetividade da proposta. E os xerifes da esquerda, acusada de não tratar do assunto Segurança Pública, surgiram aos montes (nem todos) para fazer coro aos opositores.
Também entrevistamos em A Vírgula o professor e especialista em Segurança Pública Daniel Hirata, cuja linha de pesquisa é base da série da Max (HBO) “PCC: Pode Secreto”. Hirata defende que o grande vilão do sistema carcerário brasileiro é a superlotação e a desumanidade dentro das cadeias, onde os detentos nem sequer têm sabonete ou pasta de dente.
Eles, portanto, sobrevivem no inferno, como definiu bem o disco dos Racionais MCs, coletânea em que uma das faixas, “Diário De Um Detento” (Mano Brown e Josemir Prado), aborda o massacre do Carandiru. Mas, claro, diante de toda a complexidade do sistema prisional brasileiro, para o Congresso o remédio é proibir as saidinhas.
“Bandido bom é bandido preso”, disse o deputado estadual Danilo Bahiense (PL) na sessão de terça (16) da Assembleia ao defender o tal PL. Pelo menos lá em Brasília, delegado, a frase muda de acordo com o status.
Também na terça, operação do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) prendeu 13 pessoas, três vereadores entre elas. Trata-se de operação que investiga uma quadrilha de fraudes licitatórias ligada ao PCC (Primeiro Comando da Capital).
A relação do PCC com a política e as licitações foi outro tema abordado por A Vírgula, com o próprio Hirata e em entrevista com o promotor do MPSP (Ministério Público de São Paulo) Licoln Gakyia, um dos principais especialistas sobre essa facção criminosa. Gakiya contou que “integrantes dessas facções começam a participar, por meio de laranjas ou de parentes, de licitações e disputas de concessão pública, e acabam se infiltrando no meio do serviço público”.
Diante de todos esses acontecimentos, a jornalista Vera Magalhães escreveu artigo apontando que, “enfim, a apuração de elos políticos com o PCC começou”. Segundo ela registrou, “é de conhecimento geral que diversos partidos, da esquerda à direita, praticamente todas as Câmaras municipais e setores inteiros, como transporte e terceirização de mão de obra, são operados pelo crime organizado”.
A ver se essas investigações, de fato, avançam. E se haverá um pouco mais de responsabilidade no mercado político.