De tempos em tempos, a saída temporária de internos do sistema prisional é questionada por expressiva parcela da sociedade brasileira. O slogan é invariavelmente o mesmo: tratar-se de algo nocivo, detestável “frouxidão”, supostamente a favorecer aqueles que deveriam permanecer enclausurados interminavelmente. Hoje, chegou-se ao ponto de isso ser questionado em âmbito legislativo-institucional, com projeto de lei no Congresso Nacional que pretende, de fato, a eliminação do benefício. Com efeito, alguns esclarecimentos se fazem importantes a fim de se afastar tentadoras simplificações e achismos sem fundamento na realidade material.
Pode-se dizer que a saída temporária comporta duas facetas. Primeiramente, cuida-se de instituto jurídico previsto na Lei de Execução Penal. É prerrogativa destinada a presos que não praticaram crime hediondo com resultado morte e que cumprem pena no regime semiaberto com o intuito de, num prazo previamente estipulado (sete dias), visitarem suas famílias, frequentarem cursos de 2º grau, de ensino superior e profissionalizantes, ou participarem de atividades que concorram para o retorno ao convívio social. É direito, portanto.
De pronto, já se pode afirmar: não é um benefício destinado a detentos em regime fechado (o sujeito, pelo bom comportamento e pelo cumprimento de certa fração da pena, já logrou progredir para o semiaberto); não se trata de permitir que o preso se ausente do presídio para que faça o que bem entender e pelo tempo que quiser; não é aplicável a quem cometeu todo e qualquer tipo de crime. Ademais, para a concessão da saída, a LEP estipula os seguintes requisitos cumulativos: comportamento adequado; cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena, se o condenado for primário, e 1/4 (um quarto), se reincidente; compatibilidade do benefício com os objetivos da pena.
De outro lado, comporta verdadeira política de segurança pública. A segurança pública, numa democracia, é entendível como a segurança dos direitos, leia-se, a garantia das prerrogativas humanas e fundamentais de, indistintamente, todos os cidadãos. O Estado brasileiro adotou, como política criminal, o sistema progressivo de cumprimento de pena privativa de liberdade. Ele possibilita ao encarcerado conquistar melhores condições de realizar seu encargo perante o sistema penal – indo do regime fechado ao semiaberto e, posteriormente, ao aberto (necessariamente nessa ordem, passando por todas as etapas) –, conforme dois principais requisitos: (i) cumprimento de determinada percentagem da pena e (ii) mérito do condenado (bom comportamento carcerário). É dizer: uma vez julgado e condenado à prisão pelo cometimento de crime, o cidadão deve, progressivamente, retomar ao convívio social. É o desiderato ressocializador do sistema penal, jamais reduzível a seu arcabouço repressor e punitivo.
Nesse ponto, é válido recordar que a pena de morte (em tempos de paz) e a prisão perpétua não foram adotadas no Brasil. Isso significa que as pessoas encarceradas, em algum momento, voltarão ao compartilhamento da vida em comunidade. Ao menos, é o que se prevê. E com razão: a realidade do dia a dia no cárcere é bastante diferenciada, por vezes extremamente hostil, em relação ao que se tem no mundo “aqui fora”. O ser humano enclausurado, sobretudo em condições perigosas e insalubres, comumente adquire certas reações e modos de sobrevivência um tanto distintos daquilo o que se está acostumado. Depois de determinado tempo, “trazê-lo de volta” é algo complexo, que não pode ocorrer de forma súbita; requer preparo e regresso gradual. A bem do detento e, também, de todos aqueles em seu entorno. O espírito da saída temporária é exatamente este: assegurar um retorno do preso ao convívio social aos poucos, sem medidas abruptas que poderiam pôr em risco tanto o recém-liberto quanto, principalmente, os que aqui já estavam em regime de liberdade.
Ser condenado à pena de prisão não pode significar uma sentença de morte. Enterrar vivo um cidadão e sufocá-lo nas malhas do cárcere é algo totalmente contrário à democracia. Bradar para que corpos amontoados em celas fétidas ali permaneçam indefinidamente, sem qualquer chance de retomar uma vida digna na companhia de seus amigos e familiares, nada tem que ver com o projeto constitucional pós-ditadura inaugurado em 1988. O senso comum punitivista, em sua insaciável ânsia pelo castigo, acaba por flertar com o Estado policial em franco afastamento dos princípios democráticos. Quando se trata dos institutos penais que visam a uma política de segurança pública garantidora dos direitos de todas e todos, a alma inquisitorial e o desejo de vingança necessitam ser veementemente rechaçados.
No mais, se há números relevantes de detentos que, após a concessão da saída, não retornam aos presídios, primeiramente, é de se verificar o embasamento em pesquisas de alta confiabilidade. Em segundo lugar, esse problema necessita ser debatido com seriedade em busca da redução desse percentual, jamais com a simples e açodada extinção de um instituto tão caro à progressão de regime, mas sim, no caminho de seu aperfeiçoamento.
Enfim, é preciso recordar que, no Estado Democrático de Direito, o cumprimento de pena deve ter uma finalidade para além da mera punição. Em assim não sendo, o sistema penal resta sem sentido democrático algum. Aliás, vale enfatizar que o pânico moral disseminado em torno desse tipo de instituto é irresponsável e tem rendimentos eleitorais muito evidentes. A quem interessam penas maiores, penas piores, sem quaisquer preparos à reintegração do preso? Aos comensais dos jogos político-eleitoreiros, possivelmente. À sociedade brasileira, considerada em sua vida cotidiana e coletiva, com certeza, não.