Na semana passada, uma decisão judicial inusitada chamou a atenção da comunidade jurídica de todo o Brasil. O desacerto da decisão, inclusive, foi objeto de análise de Lênio Streck no Conjur. Em síntese, o Tribunal de Justiça do Espírito Santo anulou a absolvição de um réu pelo Tribunal do Júri, em razão da advogada dos réus, em júri anterior, supostamente ter simulado um mal-estar para adiar o julgamento. A decisão do TJES se constituiu em verdadeira revisão criminal “pro societate”.
Para além do equívoco técnico da decisão, é necessário abordar o problema profundo que ela revela, que vai muito além das fronteiras do procedimento penal, revelando um contínuo e consistente processo de degeneração da dogmática e da própria Constituição em prol de um processo penal utilitarista, que visa a “luta contra a impunidade”.
É óbvio que ninguém gosta de impunidade. É óbvio que esse é um problema crônico da justiça penal brasileira. Contudo, o seu enfrentamento não pode ser feito ao arrepio da lei posta e dos princípios constitucionais que a regem. O Direito (como ordenamento), não pode ser relativizado para atingir fins, em que meios para tanto pouco importam. O que está em jogo é a integridade do sistema jurídico e, via de consequência, da Democracia brasileira.
Recordo-me com clareza da primeira vez que vi esse fenômeno desvelado de forma sistematizada. Georges Abboud, em sua obra “Direito Constitucional Pós-Moderno” demonstrou como é feita a erosão gradual dos fundamentos teóricos e principiológicos que sustentam um ordenamento jurídico. Em vez de decisões baseadas em uma sólida construção dogmática, um pragmatismo exacerbado.
Apesar de parecer tão atual em suas “revelações”, Abboud se referia a como o nazismo firmou-se no poder, legitimando-se juridicamente, desvirtuando o sistema legal sem mudar uma norma sequer (num primeiro momento), sempre baseado em valores, finalidades mais importantes, relativização e interpretação da norma à luz do interesse da vez.
É muito evidente que não estou comparando a decisão do TJES com a dos juízes nazistas (é que em tempos de dificuldades de interpretação de texto, me parece necessário deixar isso claro), mas estou dizendo que essa falta de compromisso com a Constituição não leva a nada de bom, como já se viu na história.
Esta tendência não se limita aos tribunais. Permeia todo o sistema de justiça e reflete-se na atuação de advogados, promotores e até mesmo na elaboração de leis. O resultado é um cenário de insegurança jurídica, onde as regras do jogo parecem mudar conforme a conveniência do momento ou a pressão da opinião pública.
As consequências dessa degeneração são profundas e atingem o cerne da democracia. Quando o direito perde sua coerência interna e sua previsibilidade, ele deixa de ser um instrumento de justiça para se tornar uma ferramenta de arbítrio. A confiança nas instituições se corrói, e o cidadão se vê cada vez mais distante e descrente do sistema que deveria protegê-lo (que, diga-se, foi criado justamente para proteger o cidadão do arbítrio estatal, mesmo que alguns tentem desvirtuar até isso), já que o processo penal nasce justamente para proteger o réu em suas liberdade e garantias fundamentais.
Mas como chegamos a este ponto? As razões são múltiplas e complexas. O imediatismo da sociedade da informação, a politização excessiva do judiciário (a necessidade de oferecer respostas a uma sociedade que clama por punição), a formação humanística deficiente e a pressão por resultados rápidos em detrimento de soluções juridicamente sólidas são apenas algumas das causas.
A reversão desse quadro exige um esforço conjunto de todos os atores do sistema de justiça. É necessário um retorno à valorização da dogmática jurídica, não como um exercício acadêmico estéril, mas como fundamento para decisões coerentes e justificáveis. A formação de juristas precisa ir além do estudo de leis e jurisprudência, enfatizando o pensamento crítico e a compreensão profunda dos princípios que norteiam nosso sistema legal. Além disso, é crucial reforçar os mecanismos de controle e responsabilização de todos os profissionais do direito.
O fortalecimento do Estado Democrático de Direito depende de um sistema jurídico robusto, coerente e respeitado. A degeneração da dogmática do direito não é apenas um problema técnico-jurídico, mas uma ameaça à própria essência da democracia. Reconhecer essa realidade é o primeiro passo para enfrentá-la. O desafio está lançado para todos nós cidadãos: resgatar a integridade do sistema jurídico antes que seja tarde demais.