A principal regra do jogo democrático, de que prevalece a vontade da maioria, tem sido muito benéfica para os evangélicos e seus aliados que querem transformar o trâmite legislativo em um cenário de disputas ideológicas. O ataque de parlamentares conservadores às questões de gênero e a defesa incansável do conceito tradicional de família têm servido de manobra para desviar o foco de assuntos que deveriam ser debatidos nas votações. Foi o que aconteceu recentemente no trâmite do projeto de lei que originou a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para o ano de 2024. Uma proposição importante, que determina a finalidade do orçamento anual e aponta quais são as prioridades para o período, transformou-se em uma lei com dispositivos que mais parecem uma aberração jurídica.
No texto da lei, os recursos da União não poderão custear: “invasão ou ocupação de propriedades rurais privadas”; “ações tendentes a influenciar crianças e adolescentes, da creche ao ensino médio, a terem opções sexuais diferentes do sexo biológico”; “ações tendentes a desconstruir, diminuir ou extinguir o conceito de família tradicional, formado por pai, mãe e filhos”; “cirurgias em crianças e adolescentes para mudança de sexo”, e “realização de abortos, exceto nos casos autorizados em lei”. Esses dispositivos foram incluídos na legislação por meio de uma emenda apresentada pelo deputado Eduardo Bolsonaro. Inicialmente, essa proposta de reforma foi aprovada pelo voto favorável de 305 deputados e 43 senadores, mas depois foi reprovada no texto do veto presidencial. No último dia 28 de maio, os vetos do presidente Lula foram à votação no Congresso Nacional e o veto à emenda de Eduardo Bolsonaro foi derrubado pela maioria. Dos 386 votos contrários ao veto, 199 foram de membros da Frente Parlamentar Evangélica.
Quem consultar o Diário do Congresso Nacional n° 53 de 2023, vai testemunhar os discursos carregados de ideologia e fake news de grande parte dos responsáveis pela formulação e aprovação de leis no nosso país. As justificativas dos deputados e senadores para o voto em favor da emenda fazem parecer que o objetivo do atual governo é destruir a família, acabar com a propriedade privada, sexualizar as crianças e assassinar fetos. Inclusive, foi a partir dessa retórica que a extrema-direita captou milhões de votos para Bolsonaro em 2018 e 2022 por meio da difusão de notícias falsas, envolvendo a esquerda dita comunista. E esse enunciado continua sendo mobilizado como estratégia para as eleições municipais deste ano.
Não tem cabimento uma legislação orçamentária proibir a destinação de recursos para realização de abortos, por exemplo, sendo que já são criminalizados no Código Penal. Assim como resguardar que o governo não invista em ações voltadas à orientação sexual não faz nenhum sentido uma vez que esse tipo de política iria de encontro ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Sem falar no absurdo em garantir que o governo federal não financie invasões à propriedade privada, como se isso fosse uma possibilidade, além do fato de que a propriedade privada já é protegida pela Constituição Federal. Falar em impedir que o dinheiro público seja utilizado para “extinguir o conceito de família tradicional”, além de soar muito vago, é uma forma de atacar as políticas que prezam pela diversidade de gênero e de deturpar a sua real intenção.
A inclusão desta emenda na LDO de 2024, além de desviar o debate de questões fundamentais dentro de uma lei orçamentária, como saúde, educação e segurança pública, reforça no imaginário social estereótipos atribuídos à esquerda no Brasil. É a tentativa de criminalizar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de impedir a aprovação de qualquer política pública que garanta direitos da comunidade LGBTQAPN+. Eduardo Bolsonaro e seus aliados sabem muito bem o que estão fazendo ao criarem textos jurídicos que à primeira vista não fazem sentido, mas que ganham significados no campo discursivo e ecoam de forma muito efetiva nos ouvidos de seus eleitores.
O mais grave é que dos 518 parlamentares, 386 votaram a favor da inclusão de uma emenda “sem pé, nem cabeça” na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Ou seja, cerca de 74% do conjunto de deputados e senadores que nos representam querem transformar o congresso nacional em um cenário de guerra de narrativas, em que a ideologia e o falso moralismo servem de cortina de fumaça aos reais interesses do fazer político desse grupo. Há quem subestime o poder de articulação dos parlamentares evangélicos e seus aliados, por considerar “inofensiva” a pauta dos costumes. No entanto, a atuação desses deputados e senadores vai muito além do slogan “Deus, pátria e família”. O que estamos vendo na LDO de 2024 é apenas um exemplo do que vem ocorrendo no cotidiano do Congresso Nacional. Se aberrações jurídicas assim viram lei com o aval de mais de 70% do parlamento, pode ser que muitas proposições controversas ainda sejam aprovadas.