Há 70 anos, Getúlio Vargas, então Presidente constitucional, eleito em 1950, cometia suicídio nas dependências do Palácio do Catete, sede da Presidência da República, na antiga capital federal, o Rio de Janeiro. Era noite alta, e havia saído de uma reunião tensa, na qual seu afastamento foi sugerido/imposto de forma explícita pelo então Ministro da Guerra, General Zenóbio da Costa, contestado com toda a veemência por sua filha e secretária particular, Alzira Vargas do Amaral Peixoto. Pressionado por uma forte e deletéria campanha oposicionista, que unia a oposição civil, concentrada principalmente na União Democrática Nacional (UDN), setores tradicionais do empresariado – principalmente o agrário – e frações das Forças Armadas, Getúlio se matou no auge de uma crise, cujo ápice, se ocorrido, resultaria no seu afastamento, provisório ou definitivo – por pedido de licença, ou através de um Golpe de Estado – da Presidência da República. Sabia que não haveria retorno ao cargo e que seus algozes o queriam preso e humilhado. Seu suicídio conteve, por 10 anos, o assalto do Estado brasileiro pelo consórcio entre militares e grupos civis.
Os anos pós-Segunda Guerra foram, no Brasil, um período de grande crescimento econômico e de profunda alteração da distribuição geográfica de nossa população, que foi se movendo das áreas rurais e se concentrando nas cidades, onde se instalavam as atividades econômicas mais dinâmicas, as indústrias e os serviços. Diversos autores e estudos apontam que o Brasil foi, na década de 1950, o país onde essa concentração urbana se deu de forma mais acentuada, em todo o mundo, o que nos dá a dimensão da importância de toda a transformação em curso naquela época.
Inverteu-se, a partir daquele período histórico, a antiga predominância das áreas rurais sobre as urbanas, em termos de concentração de população e de dinamismo econômico, com algumas nuances na composição das elites políticas, que, entretanto, ainda permaneceram, em sua maioria, ligadas ao capital e às atividades agrárias. A partir da década de 1950, esse processo de crescimento e de urbanização ganhou um impulso irresistível, que viria a pressionar a organização social e política brasileira, com o aumento das lutas sociais, e o consequente desagrado das elites, refratárias a qualquer tipo de mudança nas estruturas de poder.
O professor Wanderley Guilherme dos Santos, em sua obra clássica, O cálculo do conflito: estabilidade e crise na política brasileira, constrói esse rico cenário de desenvolvimento e seus conflitos com a tradição, que se negava a absorvê-los, e, mesmo, os repelia com força brutal. No fundo, eram as antigas bases do autoritarismo brasileiro, formador do ethos nacional, tão bem estudado por Heloísa Starling e Lilia Schwarcz, na obra Brasil: uma biografia, que manifestava sua gritante contrariedade com as transformações sociais em curso, decorrentes daquelas operadas no modo de produção e na organização do trabalho.
Vargas era um oligarca gaúcho, que ascendera à chefia da República com a Revolução de outubro de 1930. Ele foi a figura central na condução do Brasil em sua travessia de uma sociedade rural, assentada na economia agrária, para uma sociedade em processo de urbanização, que mantinha sua forte dependência das comodities do campo, mas que operou alterações profundas rumo a uma economia industrial e de serviços em escala acelerada.
Essas mudanças colaboravam para organizar, de forma cada vez mais intensa, todo o conjunto da massa trabalhadora que, nas cidades, estava envolvida na dinâmica dessas novas e, à época, para o Brasil, disruptivas cadeias de produção: a indústria e os serviços. Não eram mais as indústrias de transformação de baixo valor agregado, mas, sim, a de substituição de importação de produtos, o que especializava a produção e a mão de obra, bem como a consciência de classe dos trabalhadores e das trabalhadoras. Eram as bases do que ficou conhecido como projeto nacional-desenvolvimentista (um modelo satanizado pelo neoliberalismo, em sua versão entreguista, própria do sul global), responsável pela industrialização do Brasil e pela sua elevação a uma das maiores economias de todo o mundo.
Todo o longo período de governo de Vargas, em suas múltiplas fases – de 1930 a 1932, de 1932 a 1934, de 1934 a 1937, de 1937 a 1945, e de 1951 a 1954 – foi marcado pelas tensões dos conflitos, na transformação em curso, e pela forma autoritária, especialmente entre 1937 e 1945 – a ditadura do Estado Novo –, com a qual o presidente tratava as questões internas das antigas oligarquias, bem os interesses dos novos grupos econômicos e da crescente massa de trabalhadores e de trabalhadoras da indústria e dos serviços.
O campo, mantendo uma continuidade de comportamento que remonta a 1500, mantinha-se sob rígido controle dos grandes proprietários, os quais impediam que as terras desmatadas para atividades agrícolas e pecuárias fossem alvo de qualquer tipo de reivindicação por parte dos camponeses e das camponesas, desde sempre os atores sociais marginalizados em todo o processo de concentração da propriedade da terra no Brasil.
Essa concentração, ressalte-se, traz em si um conjunto de símbolos que ultrapassam a economia, perpassando todo o imaginário social e a estruturação rígida da sociedade, além dos mecanismos políticos e legais usados para controle de suas manifestações e contenção de suas reivindicações. No limite, e muitas vezes, houve eliminação física dos indesejáveis aos olhos dos grandes senhores de terra. Era um expediente comum e aceitável.
O presidente, ao longo de toda a sua primeira grande fase de governação, especialmente na década de 1940, foi concedendo, ou cedendo, às pressões de uma classe trabalhadora urbana em crescimento. Esta queria o reconhecimento de direitos elementares, há muito existentes no norte global, mas ausentes nas legislações e na realidade brasileiras, em razão do atraso institucional e da própria dinâmica econômica do país até então.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), outorgada por Vargas, em 1º de maio de 1943, foi um marco na alteração do mundo do trabalho urbano brasileiro. Ela não se expandiu para o campo, onde a modernização expressa no reconhecimento de direitos veio a se materializar, de fato, após a promulgação da Constituição de 1988, e no bojo de grandes mobilizações sociais, muitas delas acumulando forças e sofrendo duras represálias, desde antes do golpe que instaurou a ditadura civil-militar em abril de 1964.
A figura histórica de Getúlio Vargas, como lembrou em seu artigo nesta A Vírgula o professor Rodrigo Medeiros, valendo-se de observações preciosas do biógrafo contemporâneo do político gaúcho, o jornalista Lira Neto, é marcada pela contradição. Se modernizou o país, se criou, na República, as bases do verdadeiro Estado Nacional brasileiro e de todo o seu aparato – como analisado pelo professor Luiz Henrique Farias, em seu artigo para esta A Vírgula, se abriu o país para um rápido processo de industrialização e urbanização, se inseriu, pressionado ou não, os trabalhadores na vida social e política brasileira, Vargas, especialmente nos primeiros quinze anos de governação, agiu com toda a força autocrática de um homem formado pelas oligarquias, cuja Revolução, em 1930, queria sepultar. Era, ele próprio, um grande proprietário de terras, em seu Rio Grande do Sul, e um membro importante da oligarquia de seu Estado, que governou antes de ascender à presidência do país, à frente do governo provisório, em outubro de 1930.
O final dos anos 1920 e o início dos 1930 foram uma época em que o planeta vivia os efeitos nefastos de uma grave crise do capitalismo, em sua versão liberal mais radicalizada, provocada pela quebra da bolsa de valores de Nova York em outubro de 1929. Em razão disso, associado aos efeitos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da vitória da Revolução Russa em 1917, o planeta, na sua área ocidental, encontrava-se convulsionado social e politicamente. A miséria convivia com a utopia da revolução socialista, nos moldes daquela ocorrida na União Soviética, o que provocava uma forte ação repressiva por parte dos governos e de seus aliados do grande capital.
Os fascistas já haviam, com a concordância do Rei e dos grandes empresários, assumido o controle político da Itália, em 1922, iniciando um regime que se estenderia até 1943. Paradoxalmente, em plena democracia, desde 2022, já sob os efeitos de uma nova, e bem mais grave crise do capitalismo, a Itália é governada, novamente, pelas forças políticas herdeiras do fascismo histórico, sob o comando de Giorgia Meloni, uma das grandes expressões do movimento. O fascismo e seus símbolos encantadores e mobilizadores das massas sempre encontram, valendo-se da gramática populista, espaço propício para o crescimento, em momentos de crise sistêmica, como a que hoje vivemos no ocidente. E isso em todos os países, inclusive no Brasil, como já bem o sabemos, desde 2018.
O mundo vivia, então, o que hoje conhecemos como período entre-guerras. Uma nova, a Segunda Guerra Mundial, muito mais devastadora que a Primeira, iria explodir em 1939, arrastando-se até 1945, e se reinventando logo após como Guerra Fria, travada entre as duas grandes potências vencedoras do conflito – Estados Unidos e União Soviética –, até 1991. Esse conflito interminável manteve o planeta em suspenso, e dirigiu toda a geopolítica mundial no período, levando, inclusive, a intervenções diretas de nações estrangeiras aliadas a grupos locais – civis e militares – em assuntos internos de outros países, buscando a subversão da ordem constitucional para imposição de uma outra, coadunada aos seus interesses geoestratégicos.
Ao assumir o governo provisório, em outubro de 1930, Vargas sabia que havia toda uma construção institucional erigida a partir da “Política dos Governadores”, pactuada no governo do presidente Campos Salles (1898-1902), e que permitiu o funcionamento das engrenagens da Primeira República, a qual deveria ser desconstruída ou, no mínimo, profundamente alterada. Sabia disso a fundo, pois vivera essa “Política” na condição de governante de seu Estado, entre 1928 e 1930, e, antes, como Ministro da Fazenda do Presidente da República que iria depor em 1930, Washington Luís, entre 1926 e 1927. Sabia, também, que a alteração de uma estrutura assentada, como o modelo da Primeira República, não seria possível de se operar sem perdas que provocassem dissenções sérias no seio das oligarquias, e que estas iriam se mobilizar em defesa de seus interesses exclusivos.
A guerra civil paulista, entre julho e outubro de 1932, iniciada sob o pretexto de que o país precisava de uma nova Constituição e de um governo legitimamente eleito, foi uma experiência traumática vivida pelo Brasil e, particularmente, por Getúlio Vargas. Essa experiência, vencida por ele em aliança com as Forças Armadas e com os governos dos demais Estados, foi uma sinalização da sofisticada operação que consistia em alterar as estruturas da Primeira República.
Finda a guerra civil, Vargas recua, repactua, convoca uma constituinte, a de 1934, e governa como presidente eleito indiretamente até que, novamente no mês de outubro, só que de 1937, em aliança com as Forças Armadas e com setores do grande capital, dá o Golpe de Estado e inicia a ditadura do Estado Novo, espelhada no modelo de Portugal, então governado por Oliveira Salazar. Nesse período, sofreu duas tentativas de golpe, uma de esquerda, em 1935, outra da extrema-direita integralista, em 1938, vencendo a ambas. Como resultado, teve a oportunidade de colocar as duas forças políticas na ilegalidade, prender e deportar seus líderes, passando, como ditador, a exercer um governo ainda mais centralizado, mais forte e autocrático.
A historiadora Anita Leocádia Prestes, em entrevista a um programa da TV Brasil, na década passada, foi peremptória ao definir a principal base de sustentação de Getúlio Vargas como ditador: os dois grandes líderes militares do Exército brasileiro de então, os generais Eurico Dutra – mais tarde Presidente da República diretamente eleito (1946-1951) – e Góis Monteiro.
Esses mesmos militares que lhe sustentaram a ditadura foram os que lhe derrubaram do poder, em 1945, ao findar a Segunda Guerra. Eram outros tempos, e os militares que voltaram da Itália já estavam, em sua grande parte, cooptados pelos interesses dos Estados Unidos, na criação de um grupo de apoio aos seus interesses geopolíticos no subcontinente latino-americano.
Prevendo sua queda após a Segunda Guerra, Getúlio reorganiza o sistema político, permitindo a criação de partidos, inclusive o trabalhista. Assim, convoca eleições, que queria disputar, tendo sido impedido pelo golpe. Permanece fora do poder, ainda que exercendo o mandato de Senador pelo Rio Grande do Sul, até o seu retorno à Presidência, em 1951, como Presidente eleito e já consagrado como um líder de massas, algo inédito na história brasileira até então.
Mas era outra conjuntura, interna e externa, e Vargas, o grande arquiteto e engenheiro político, com todo o seu pendor autocrático, teve dificuldades em lidar com uma oposição civil e militar golpista, que o desprezava por completo, que jamais aceitou o fato de ele haver retornado, pelo voto, à Presidência que exerceu como ditador, como Presidente eleito indiretamente e como Presidente provisório. A história deixa marcas sobre os corpos e as biografias de quem a construiu, e Vargas sentiu, no seu, todo o peso dessa força.
Sua margem de manobra com as forças políticas, em seu governo constitucional, era significativamente menor do que nos anteriores, apesar de boa parte da classe política dos anos 1950 haver sido gestada nos seus longos anos como governante, seja por ele, seja no campo de oposição a ele. Ainda eram vivas as marcas de toda a repressão brutal de seu regime, entre 1930 e 1945, especialmente as ações de sua polícia política e do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado na época do Estado Novo e responsável pela transformação de Vargas em um ícone da história nacional, com uma simbologia que marcou o imaginário brasileiro desde então, dividindo e mobilizando opiniões e paixões – o órgão usou de todas as mídias existentes para popularizar e cultuar a pessoa do presidente, criar em torno dele narrativas heróicas, como a do “pai dos pobres”, incentivar as marchinhas de carnaval que enaltecessem Vargas etc.
A partir de 1951, a modernização conservadora dos primeiros 15 anos – décadas de 1930 e 1940 – deu lugar à estruturação de um modelo de desenvolvimento planificado, voltado para a construção do Brasil como uma economia industrial moderna e exportadora, que teria seguimento no governo de Juscelino Kubitschek – JK (1955-1961) –, ele próprio um ator político de formação varguista. Era o nacional-desenvolvimentismo nascendo e se impondo. JK, que foi eleito após a crise institucional que sucedeu ao suicídio de Getúlio, somente tomou posse em razão de um “golpe preventivo” do então legalista Ministro da Guerra, o Marechal Henrique Lott, impedindo que a contestação da eleição se transformasse na anulação do pleito, como pretendiam a UDN e outras forças antivarguistas de matriz golpista. Mobilizando as guarnições, especialmente a do Rio de Janeiro, Lott frustrou os planos golpistas, e JK pôde tomar posse, bem como governar os seus cinco anos de mandato.
Se, ao atirar no próprio peito, em agosto de 1954, Getúlio mobilizou as massas que, em sua maioria, o idolatravam pela propaganda que o fixara como grande líder e criador das bases do Brasil enquanto nação, além de uma sociedade moderna, nas áreas urbanas, seu ato não teve o condão de sustar as ações de grupos internos que, desde sua eleição, em 1950, pregavam abertamente a intervenção militar na vida civil, a quebra da ordem constitucional, como forma de cancelar sua figura histórica e conter os avanços que a própria sociedade exigia. Entre 1950 e 1964, houve ação explícita das forças golpistas, dentro e fora do aparato de Estado, em constante confronto com aquelas de viés legalista.
Foi com a Nova República, nos governos do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), que as estruturas moldadas pelos longos anos de governo de Getúlio Vargas começaram a ser desmontadas, especialmente no campo dos direitos sociais e da ordem econômica, ainda que esse desmonte tivesse sido sempre defendido pelos grupos conservadores. Estes golpistas não tiveram êxito em desmontar o legado de Vargas em 1954, nem em 1955, nem em 1964. Todo o esforço de Vargas, e posteriormente de JK, para transformar o Estado brasileiro em um elemento indutor do desenvolvimento, criando empresas que garantissem a exploração de nossas riquezas e a prestação de serviços essenciais, diante do desinteresse ou da falta de capital do ente privado, foram objeto de uma repulsa férrea, movida pelo credo neoliberal.
Hoje, 70 anos após sua morte, o legado de Getúlio Vargas está ligado à própria história brasileira. De nada valeram as ações para desestruturar sua obra, pois a imagem do homem público, do estadista que pensou e agiu no sentido de construir um grande país, mesmo com sua mentalidade complexa e autoritária, pulsa de forma latente no imaginário social, carecendo, entretanto, da necessária ligação entre ambos os getúlios. Mais que a figura de Getúlio Vargas, o Brasil, nesta quadra histórica, busca reencontrar os caminhos para a (re)construção do seu desenvolvimento, em bases mais avançadas, com autonomia e com grande capacidade de conhecimento e inovação.
Mesmo sofrendo ataques ininterruptos, a democracia brasileira precisa resistir, usando dela própria como antídoto contra os grupos e pessoas que tentam criar as condições para um brutal retrocesso político e civilizacional. Hoje, o debate na esfera pública do Brasil, como em 1954, está bastante contaminado com o discurso e os interesses de seres e organizações que se valem das liberdades constitucionais de um modelo de Estado liberal para – assaltando-o pelo voto, alcançável através de um populismo brutal, difundido pelas tecnologias de informação – anular todos os avanços que, de forma lenta e cumulativa, fomos alcançando ao longo de muitas décadas.
Há que se estar sempre atento contra os inimigos da democracia, e honrar o passado de personagens que, mesmo contraditórios, foram fundamentais para que a cidadania brasileira se tornasse um ativo de todas e de todos.