O nível do debate público revela-se cada vez mais raso, independentemente da questão. Desde domingo, dia 28 de julho, dia das eleições presidenciais venezuelanas, as redes sociais e as mídias convencionais brasileiras, mas também as demais do hemisfério ocidental, estão sendo palco de uma guerra informacional cujas vítimas são a verdade, a razão e a qualidade do que vem sendo divulgado e debatido. O comportamento e as ideais manifestadas deixaram as esferas da informação e da análise criteriosa para, tomados pela ideologia e pelos interesses múltiplos dos distintos produtores e divulgadores, transformarem-se em instrumentos de ataque e defesa de uma guerra cultural e informacional travada sem trégua.
Isso não difere em nada do tratamento de outros tantos fatos surgidos a cada dia em nosso mundo. Análises aprofundadas, criteriosas, parecem haver perdido espaço em um universo cognitivo incapaz de suportar a absorção daquilo que ultrapasse o limite raso da tolerância, ou que não corrobore todo um sistema de crenças e de símbolos previamente erigidos e arraigados no imaginário social, aqui tomado em sua múltipla fragmentação. Adjetivos soam mais fáceis do que toda uma construção argumentativa e explicativa, pois são absorvidos de imediato pelo imaginário, acionando a gramática que é própria e prévia a cada pessoa.
Há uma divisão clara de opiniões, um maniqueísmo normalizado como se fosse algo próprio da história dos povos e de suas culturas. Essa cognição adestrada não admite interseções que a desviem para a problematização dos fatos, pois isso teria o condão de erodir todo um edifício cultural baseado exatamente na repetição de chavões e na reafirmação de sentenças a serem aplaudidas pelas massas, sempre desejosas de espetáculos para seu deleite ou para a catexia de suas energias contidas.
Esse comportamento reflete o próprio mundo na contemporaneidade, ao menos em seu hemisfério ocidental. Tudo é radicalizado, tudo é alvo de sentenças oriundas de posições formadas, tudo precisa ser encaixado nos modelos já elaborados, inexistindo margens para manobras ou fugas dessa armadilha analítica e informacional, sempre representada de forma pirotécnica.
Nesse cenário, julgar e sentenciar tornou-se, pelas mídias tradicionais e pelas redes sociais, o padrão exigido por um imaginário social adoecido, contaminado pelas paixões e míope diante da história, que não deseja abrir-se à verdade, pois esta já se cristalizou como autoconcebida e imutável. É algo que beira a distopia, pois parte da humanidade, ao menos no ocidente, encontra-se imersa em uma disfunção cognitiva, alimentada pelos sentimentos perversos da raiva e do ódio e pela desinformação em caráter pleno.
A expressão desse comportamento se manifesta com a mesma irracionalidade das paixões de uma torcida esportiva em dias de jogo. Não há espaço para debate, somente para a confrontação de teses e de informações, como se estivesse em disputa não a busca da verdade histórica, mas da narrativa a ser referendada como oficial, em razão do maior número de apoios angariados junto ao imaginário social.
No caso venezuelano, não há abertura para que se problematizem elementos históricos que levaram o país ao governo bolivariano desde 1998, especialmente após o golpe fracassado sofrido pelo então presidente Hugo Chávez em 2002. Segundo alguns, o bolivarianismo é a encarnação do mal, diferentemente do que pensam outros, para os quais ele é um elemento vital no enfrentamento de toda a estratégia neocolonial das grandes potências do norte global. Este último é um discurso caro a alguns setores sociais da América Latina, exatamente em razão da exploração colonial e neocolonial da qual a região foi vítima ao longo de toda a sua história, desde o início da sua conquista pelas potências europeias, em 1492.
O déficit de democracia na Venezuela bolivariana é alto e preocupante, mas não tão diferente de outras nações ocidentais, como os Estados Unidos, por exemplo.
No país vizinho, a onipresença dos militares na estrutura de Estado e o controle desta pelo governo bolivariano colocam todos os processos políticos sob forte suspeita de manipulação. Em sua primeira posse presidencial, em fevereiro de 1999, Hugo Chávez jurou sobre uma constituição por ele classificada como “moribunda”, prenunciando o desejo de dar ao país uma nova ordem, a partir de seu projeto político, vitorioso nas urnas no ano anterior. E assim o fez, alterando, também, ao longo do tempo, a composição das instituições de Estado, subordinando-as às suas concepções e ao projeto político que liderava, e se fiando de maneira sólida nas forças armadas, além de criar as milícias populares, munindo-as em defesa do governo.
Já nos Estados Unidos, a interferência do grande capital na definição das políticas de Estado e mesmo o sequestro deste pelos interesses das corporações econômicas vão erodindo as instituições democráticas criadas no século 18, quando da fundação do país.
Ora, direis, os casos são distintos. Sim, na superficialidade o são, mas não em sua essência, porque ambos atingem o cerne de um regime democrático, a vontade popular e as instituições de Estado, que passam a ser cerceadas e subordinadas por projetos políticos e econômicos que, claramente, buscam influenciá-las e dirigi-las conforme seus interesses.
Trata-se, pois, de um cenário perfeito para que ataques aos princípios basilares de um regime democrático sejam desferidos, à luz ou nas sombras. Reside aí uma das grandes causas da que vem sendo considerada uma crise das democracias liberais no hemisfério ocidental, algo de que se vale a extrema-direita para, através do populismo e do sentimento das massas, avançar com seu projeto autocrático por vários países.
Mas poucas pessoas manifestam interesse em discutir a fundo essas questões. Não lhes interessa, por exemplo, que a Venezuela seja uma presa disputada pelas grandes potências em razão de possuir as maiores reservas mundiais de petróleo. Não lhes interessa o fato de que, desde o fracassado golpe de 2002, como abordado em análises desta A Vírgula, o seu governo tenha se afastado da esfera de influência dos Estados Unidos e buscado uma via alternativa, até encontrar, na década passada, o interesse de aliança por parte da Federação Russa e da China.
Hoje, a Venezuela, país membro dos BRICS, carrega sobre si o pesado ônus de mais de 900 sanções por parte do governo estadunidense e de algumas nações europeias, o que agravou as condições econômicas internas, levando à migração de milhões de nacionais em busca de melhores condições de vida. Em um hemisfério dominado pelas políticas neoliberais, esses imigrantes se submetem, em sua maioria, a condições precárias de trabalho e de vida, mas não retornam ao seu país, temorosos da realidade local. Vagam como zumbis, apátridas.
No entanto, todas essas questões passam desapercebidas, ou são invisibilizadas ou distorcidas, prevalecendo o julgamento calcado em preconcepções de matriz ideológica sobre o país vizinho. Nações como o Brasil, a Colômbia e o México, cujos governos optaram por uma postura serena diante dos assuntos internos da Venezuela, evitando arroubos demagógicos de declarações desprovidas de base realística comprovada, tornaram-se alvo de ataques brutais ao longo da semana. Esses ataques foram sendo amenizados, em parte, no momento em que a serenidade diplomática se mostrou um grande ativo para que se estabeleçam atores com capacidade de diálogo e de construção de pontes que possam evitar o caos interno. Isso é política externa.
Todavia, infelizmente, vimos alguns Chefes de Estado emitirem, ao longo da semana, bravatas sobre um assunto interno de nação estrangeira, como se fossem membros de facções e não homens e mulheres com responsabilidades de comandar seus países, e, consequentemente, de respeitar a necessária liturgia que deve guiar as relações internacionais. As nações estrangeiras, como os Estados Unidos, não devem e não podem interferir nos assuntos internos de outros países, muito menos proclamar, como se fossem autoproclamados emissários dos deuses – o que demonstra toda a sua postura imperial, resultados eleitorais que, oficialmente, inexistem. Isso é endosso ou incitação para fraude ou golpe de Estado, uma temeridade, no mínimo.
A grande questão das eleições do dia 28 de julho se resume no fundamental, ao seu resultado. Oficialmente, Maduro está reeleito, fato contestado pela oposição, especialmente a facção de extrema-direita, comandada pela ex-deputada Maria Corina Machado. Esta alega vitória, baseada em pesquisas que apontavam que seu candidato, Edmundo González, estaria na frente com larga maioria. Mas, oficialmente, não foi isso o que foi revelado pelas urnas. Como o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) é controlado pelo regime, e dado os pendores autocráticos do mesmo, estava montada uma bomba perfeita.
Nesse âmbito, uma sólida cobertura midiática, seguida por outra, nas redes sociais, antecedeu as eleições, alardeando a iminente derrota do presidente no poder, a partir de pesquisas. Sua vitória, oficialmente declarada pelo CNE, foi de pronto contestada pela oposição de extrema-direita, seguida de uma cobertura midiática, e de uma repercussão nas redes sociais, que corroboravam essa visão. Levantou-se suspeita de irregularidades e de fraude generalizada, o que até agora carece de provas para se confirmar.
Mas isso, nos tempos atuais, de agitação midiática e nas redes sociais, é algo que pouco importa. Havia uma hipótese, e esta precisava ser provada pelas urnas. Como não o foi, só pode ter sido em razão de fraude, é o raciocínio simplista que a justifica.
O governo bolivariano, como vimos, pelo seu histórico, encontra-se em uma posição frágil perante a comunidade internacional, que dele desconfia, motivada por toda uma campanha meticulosamente planejada e executada. Esta é a razão pela qual os governos do Brasil, do México e da Colômbia pedem que as atas de cada urna sejam publicizadas, permitindo que uma auditoria ateste os resultados. Enquanto isso não ocorre, persistem as dúvidas, o que só causa instabilidade interna e externa.
A semana termina, como esta A Vírgula antecipou, com a Venezuela imersa na mesma cena interna radicalizada em que se encontra há mais de duas décadas. Ações mirabolantes que algumas pessoas alimentaram poder assistir, como as de cunho militar, estão longe de ocorrer. O presidente oficialmente reeleito, Nicolás Maduro, conta com o apoio da Federação Russa e da China, além do Irã. Isso lhe garante a segurança geopolítica contra qualquer tipo de aventura de grande envergadura que tenha sido planejada. Mas não o livra das manifestações internas, espontâneas ou insufladas por nações estrangeiras, voltadas para a desestabilização institucional, as chamadas “Revoluções Coloridas”. A oposição ao governo bolivariano é ampla, não se concentrando apenas nos grupos de extrema-direita. Tal aspecto merece ser objeto de maior atenção, evitando-se, assim, conclusões errôneas.
Por seu turno, o presidente Maduro age com notório comportamento autocrático, típico de Chefes de Estado que se valem de mecanismos de exceção para a garantia de sua governabilidade. Todos os Estados surgidos no século 20, fruto de revoluções ou de decisões de organismos internacionais, vivenciaram ou vivenciam tal excepcionalidade – União Soviética, China, Israel e Cuba, para ficarmos em alguns exemplos marcantes. A Venezuela, com o seu governo acuado após 2002, juntou-se progressivamente a esse grupo, em razão de uma escalada de radicalizações internas e de ameaças externas sofridas. Isso gerou uma lenta e sólida autocratização do seu regime, com Chávez, até sua morte, em 2013, e com Maduro, a partir daí.
A posição do governo brasileiro, prudente e serena, coerente com nossa tradição diplomática, foi alvo de ataques de todos os lados, de todas as facções políticas brasileiras. Mas se mostrou acertada, elevando o país à condição de um mediador confiável nos conflitos internos das nações da América do Sul. Agora, é seguir conversando de forma intermitente, contendo danos, e aguardando que o povo da Venezuela, algum dia, encontre sua própria via na condução para um ponto de equilíbrio interno.
Mas não deve haver ilusões, pois isso é algo bem distante no horizonte histórico que se apresenta diante de nós. Seguirá a Venezuela sendo um país com grandes conturbações internas, movidas pelas forças políticas que não admitirão cessar as hostilidades que as mantêm vivas no cenário nacional, além de ser uma nação cobiçada pelas potências estrangeiras em razão de suas vastas reservas de petróleo, um ativo energético em extinção. Mais que nunca, precisamos aprender a viver um tempo histórico onde a incerteza é a tônica de todo o processo.